“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

SONETO DAS ETAPAS



o lúdico que ao vosso corpo ilude
agora na cadeira de balanço
vos traz a infância boa que tão rude
vadiava nua livre e sem ranço

foi-se o tempo e com ele a juventude
alçou seu voo num rápido avanço
maturidade em sua plenitude
passou breve sem pausa sem descanso

e na vossa casa enfim a velhice
sem bater entrou nada vos disse
sendo porém a fase derradeira

cochila com o gato no tapete
e de quando em quando canta em falsete
até que a morte encerre a brincadeira


19-12-12

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júlio

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

ALERTA SOBRE O POEMA



água esquecida na bacia
o poema tem alto teor de racumin
afasta-te dele  -  não chegues perto
porque o risco da tentação
é muito maior do que qualquer cuidado
foge pro teu canto
deixa que uma revista de TV te distraia
o poema é porta aberta para o vício
não percebes que a morte está sempre a rondá-lo?
o encantamento que o poema traz
é pura reinação do demônio que habita em cada um de nós


19-12-12

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Júlio Saraiva
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domingo, 16 de dezembro de 2012

VIRAÇÃO (sobre um poema de seféris)




"Morreram todos a bordo, mas o barco persegue o in-
tento que desde o porto vem buscando" (*)
- Giorgos Seféris -

a algazarra dos marujos mortos
parece ignorar o luto das pedras
setas indicando lugares
que o fim-do-mundo não quis

dever não cumprido
cheiro forte de maresia
o corpo do poema também jaz frio
no cais

nada mais a fazer
o barco se despede
e sozinho segue o seu destino
o mar em paz agradece


(*) Tradução do grego de José Paulo Paes

16-12-12

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Júlio Saraiva
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quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

MARÍA POLIDOÚRI



"Sou a flor roída pouco a pouco por um verme secreto..."
- María Polidoúri -


toca-me fundo o teu desespero de noites corroídas
mãos geladas acenando despedidas premeditadas
palavras bêbadas & olhares asfixiados
ruas compridas que iam dar sempre na porta da indigência
atenas com suas traças devorou teu corpo frágil
como se tua carne fosse toda feita de trapos
mais tarde paris foi a confidente que acabou por trair-te
mas nunca percebeste quanto veneno havia no vinho oferecidos
sob as luzes cegas daqueles lugares suspeitos

toca-me fundo a tua solidão de flores que já nasceram murchas
chuvas de verão que de nada serviam & pesados invernos
outonos que enchiam teu quarto triste de assombrações
as primaveras eram feridas que não iam cicatrizar nunca
todas as estações traziam-te a crua intimidade da morte
no entanto não querias mas um dia foste amada
quando achaste de querer já estavas morta


13-12-12
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Júlio Saraiva
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HISTÓRIA DE SANTO


quando lhe morreram os pais
(um se foi atrás do outro)
santo antônio do egito
também dito santo antão
santo ainda não era
talvez nem quisesse ser
deu parte dos bens a irmã
a outra deixou com os pobres
e foi viver no deserto
em oração dia e noite
de vez em quando o demônio
achava de ir perturbá-lo
então a coisa pegava
quebrando a monotonia
assim foi a vida de antônio
assim foi a vida de antão
morreu tinha mais de cem anos
dentro de sua caverna
com os dentes todos perfeitos


11-12-12

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Júlio Saraiva
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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

ELEGIA SOBRE OS MEUS DIAS CONTADOS


´
"De tão lúcido, sinto-me irreal."
  - Dante Milano -



meu barco navega sobre os meus dias contados
com a calma de quem perdeu o medo do mar
não careço bússola - deixo-me conduzir pelas estrelas
e rio por saber-me um homem do passado

como prenda levo a lembrança dos meus mortos
as muitas bocas que a timidez me impediu beijar
as lágrimas que guardei e esqueci de derramá-las
as inoportuníssimas gargalhadas de deboche
alguns pedidos de desculpa levo comigo também

minha insaciável vontade de beber deixo por aqui
quem se interessar por ela faça bom proveito
(pode ser útil nos momentos de vazio absoluto)
meu livro de sonhos e meu canivete suíço
meu relógio que parou num meio-dia qualquer
pensei em deixar mas por capricho mudei de ideia
pequenos caprichos valem mais que uma fortuna

meu barco navega sobre os meus dias contados
com a calma de quem perdeu o medo do mar



11-12-12

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Júlio Saraiva
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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O ENJEITADO



na secção de achados & perdidos
do aeroporto internacional de guarulhos
jaz um poema de amor ao lado de um par de dentaduras
a mulher que o lia na sala vip com lágrimas discretas
de propósito fez deixá-lo na poltrona
e embarcou num voo noturno para copenhague


10-12-12

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Júlio Saraiva
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domingo, 9 de dezembro de 2012

ARMADILHA




tenho medo dos olhos
azuis que não tive...


09-12-12

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Júlio Saraiva
São Paulo, Brasil
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CRIME PERFEITO



pois foi assim - eu vi
: a moldura engoliu narciso
& o espelho levou a culpa


09-12-12
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Júlio Saraiva
São Paulo, Brasil
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sábado, 8 de dezembro de 2012

MARCHA-RANCHO

"Todos são príncipes e mandarins
E ao fim dos festins simples polichinelos..."
- Dança de Força -
Poema de Paulo César Pinheiro com música de Eduardo Gudin


um dia tive medo de adivinhar o mar
para não espetar o coração dos navios
nunca fui alegre - punha-me triste nos parques
minha mãe fazia as vezes e sorria por mim

então foi que os meus dias me vinham exaustos
uma mulher que guardei no colo da memória
espalhou pela rua toda que eu era poeta
e na minha tolice deu-se pois que acreditei

não aprendi música porque não quis nunca
mas sempre brinquei de inventar girassóis
qualquer dia desses prometo ir à falência

(que o dono do botequim não me ouça...)
os foliões desfilam tão alegres lá fora
e eu daqui da janela metido em meu tédio assobio...

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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BERCEUSE PARA CRISTIANE


no teu sono macio as palavras respiram
e o meu poema se refaz manso
como a criança encantada do brinquedo

no teu sono macio a treva desaparece
as minhas luas mortas reagem
e tornam a brilhar num céu sem fim

no teu sono macio os anjos existem
o tempo impiedoso descansa um pouco
e bocejando ameaça desistir de passar

no teu sono macio a imaculada canta
e o mundo todo de repente se encolhe
para poder escutar o seu canto de paz



08-12-12
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

POEMA



esgotadas todas as possibilidades de respirar
abro sem medo os meus olhos para a morte
meus barcos pedem paciência aos ventos
a tempestade de um dia agora parece tão calma
o silêncio me ensina o evangelho segundo os peixes
sem querer então me descubro rezando
diante de um altar de algas e espumas

não sinto cansaço ainda que me falte o ar
e ressuscito memórias velhas mas tão velhas
que me torno menino de novo a correr sem parar
o peso das marés que tenho nas costas não me incomoda
uma gaivota amiga me empresta o seu voo


07-12-12
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Júlio Saraiva
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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

POEMA NUBLADO



pesava um silêncio roxo de depois da missa
minha avó me levava pela mão à igreja de são geraldo
onde por acaso fui batizado
hoje esbarrando nos sessent'anos
olho o largo padre péricles em perdizes
: a igreja de são geraldo ainda está lá com sua fachada cinza
e em cima do altar-mor o mesmo são geraldo triste segurando um crucifixo

cônego ulisses salvetti que mancava de uma perna
me batizou em latim - sou do tempo do latim - já morreu
minha avó já morreu e meus pais também
para desgosto de minha avó não fui padre
: conheci mulher muito cedo
mas o cordeiro de deus me espia do alto e me perdoa
pensando bem eu não devia nunca ter sido poeta
: acumulei num só peito de homem todas as dores do mundo
e morri muitas vezes
: o prazer pelo álcool começou muito cedo

não deixarei herdeiro e nem herança
os sinos de são geraldo tocam as vésperas
já não creio mais que os santos façam milagres
nada mais espero de mim mas sigo
calado como o cristo morto na procissão de sexta-feira santa
minha mulher me olha com ternura
e me diz que amanhã vai fazer tempo melhor
: mesmo nublado eu acredito  -  a morte passa


18-11-12

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Júlio Saraiva
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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

SONETO INGLÊS DO MEU TEMPO


Aos meus pais, em memória.


neste meu tempo triste habita um velho
que por crer na sua fantasia envelheceu
abraçado aos cacos finos do espelho
riu-se da morte que o acaso lhe deu

seu casarão em tijolos um templo
mas veio outro tempo e mal o sucedeu
e servindo sempre de mau exemplo
escreveu nós onde devia ser eu

sendo um foram tantos os cadáveres
que de envergonhada a morte enrubesceu
escondida no colo das árvores
quando inda havia campas em mármore

com seus anjos tristes que a terra comeu...
(quem foi que roubou aquele tempo meu?)

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Júlio Saraiva
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OS POEMAS DE AMOR MORRERAM...


os poemas de amor morreram
de falência múltipla das palavras
: flores & coroas
não devem ser enviadas

no princípio era a miopia
mas não ligaram importância
: bastava um par de óculos - não resolveu
depois veio a cegueira irreversível
provocada pelo diabetes
: excesso de açúcar nas palavras
volta não teve mais

os poemas de amor morreram
pelo bem da poesia & dos poetas que vão nascer
não foi falta de aviso
: rilke já havia alertado
dos perigos dos poemas de amor

os poemas de amor morreram
: lágrimas são inúteis
os poemas de amor morreram
na mais cruel indigência
nenhum poeta custeou o enterro
nenhum sino dobrou choroso
nenhuma mulher desesperada cortou os pulsos
com a lâmina de barbear do amante
que fugiu para moscou com a trapezista
de um circo-fantasma
nenhum infeliz se atirou da sacada do prédio
de uma repartição pública qualquer
nenhuma adolescente se entupiu de barbitúricos
com bebida ordinária

os poemas de amor morreram
: - In Paradísum dedúcant vos Angeli
Requiéscant in pace."

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Júlio Saraiva
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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

DOS DEVERES E OBRIGAÇÕES DO POETA


é dever do poeta
repatriar o poema
ao seio da noite
em que foi gerado

repartir o pão
das palavras com
os que não o têm
é dever do poeta

dizer não quando
o sim pode ferir o
menor não é dever mas
obrigação do poeta

é obrigação do poeta
ir à forra em nome de
todos ainda que o inimigo
lhe sangre o verso

é dever e obrigação
do poeta tocar o barco
ainda que ele corra o
risco de navegar sozinho

15-10-12_
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Júlio Saraiva
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domingo, 14 de outubro de 2012

BUCÓLICO



Um leve sopro de flauta
Um poema que não aconteceu
Uma imagem que bem podia ser
Uma nuvem de poeira
Um anjo
Uma estrela
Uma ilha

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Júlio Saraiva
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MÁRMORE





A beleza pálida das antigas noivas mortas...


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Júlio Saraiva
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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

POEMA OBSCURO


tenho um gosto de cacos de vidro na boca
mas posso ouvir da janela o dobrar dos sinos do convento carmo
teresa de ávila - a grande doutora - não quer ser mais minha amiga
joão da cruz não me recita mais os seus Cânticos
teresa de lisieux despreza o meu rosto
e manda dizer que não sou digno das suas rosas
meus santos todos se cansaram de mim
sou um homem sem prece e sem rumo
a caminhar torto pela Rua Direita

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Júlio Saraiva
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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

PECCATA MUNDI


noite alta
quando deus boceja
e cansado da criação do mundo vai dormir
os anjos escapam dos vitrais
despem-se de suas asas
e vão fazer sexo
na sacristia das igrejas


11-10-12

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Júlio Saraiva
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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

SONETO TRISTE

nada mais me trará de volta o dia
enquanto me doer a ausência tua
e sendo eu um a mais no olho da rua
sou apenas o pó que eu não queria

onde foi parar minha poesia?
no meu peito arde esta chaga crua
e assim me morro sem a garantia
de que amanhã a vida continua

fecham-me de vez todas as janelas
tornam-se mais altos todos os muros
sufoca-me o peso desses escuros

eis-me de novo com as minhas guerras
navegando só sem vento e sem vela
no mar insano dos meus esconjuros


18-09-12

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

DEPOIS QUANDO AO PÓ EU TORNAR...


depois quando ao pó eu tornar escuta
guarda teu choro pelos que têm fome
e continuam nesta vida bruta
tendo miséria como sobrenome

fica a certeza - fui mais um na luta
mas a lembrança de repente some
a voz do morto ninguém a escuta
o tempo aos poucos apaga-lhe o nome

esquece todas aquelas histórias
pois foram frutos de tantas loucuras
noites bêbadas junto das escórias

a pecar e pecar sempre às escuras...
rasga as páginas das minhas memórias
não são escritos  -  apenas rasuras


19-09-12

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Júlio Saraiva
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domingo, 16 de setembro de 2012

BALADA DO OUTRO

ele quis alguma coisa
além das descobertas
uma coisa maior que o tempo
com sua pressa de tempo
não lhe podia dar
então ele mesmo achou de
construir o seu tempo
um tempo sem pressa de tempo
porém seus olhos moídos
nem sempre podiam enxergar
e os ombros cansados também
já não suportavam mais
o peso de tantas marés
assim mesmo ele quis porque quis
alguma coisa além das descobertas
alguma coisa que nem ele mesmo
sabia ao certo o que era...
e como essa coisa não vinha
trancou-se em sua mudez
deixou que as palavras todas
perdessem o significado
e deixou que aquela noite se partisse
ao meio como uma laranja podre
e morreu contente de tédio
em seu quarto com a tv ligada
morreu de um tédio tão natural
que o seu rosto tinha um quê de feliz
como dantes nunca o tivera


16-09-12

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Júlio Saraiva
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sábado, 15 de setembro de 2012

EVANGELHO SEGUNDO O POETA

no princípio era a lua
a pedra
o sol

depois o susto
o surto
a palavra
o sonho

e do sonho fez-se a mulher
foi quando a poesia
habitou entre nós
para sempre

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Júlio Saraiva
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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

ODE AO MORTO


o morto tem a garganta acesa
e uma extrema-unção precoce

o morto em seu caixão de vidro
é retalho de si mesmo
usa o terno que não tinha
e a gravata que lhe deram

e segue assim desabotoado
achando que não morreu


12-09-12
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Júlio Saraiva
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 7 de setembro de 2012

POEMA DE 7 DE SETEMBRO

que importa o dia lá fora
se as minhas pernas e os meus pés não se entendem?
da janela o olhar aflito que tenho
põe-se a engolir a rua
no entanto mantenho-me sóbrio
e aceito a condenação que me foi imposta
os livros me espiam mudos e fechados
as palavras estão dormindo
acordar madame bovary ou capitu com os seus
olhos de ressaca seria inútil
que dorian gray descanse em paz
zorba o grego dance muito
e os poemas de camões me deixem quieto
não tenho pressa
tudo é uma questão de paciência
nesses anos todos só tenho conjugado o verbo esperar
quando eu me via nos campos de batalha
o desejo de ser herói me empurrava para a vida
porque eu cria nos heróis
hoje estou reformado sem nenhuma medalha
também não me consta ter praticado
qualquer ato de bravura
uma paz feita de vazios me envolve nesta
madrugada de 7 de setembro
dia da pátria - da minha pátria
mas acontece que eu não sei se ainda tenho pátria

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Júlio Saraiva
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CHICO BUARQUE - DESENCONTRO

SONETO DO AMOR CANSADO

"Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo (...)"
- Carlos Drummond de Andrade -


sim os corpos correm como inimigos
a vida foge mas vem o amanhã
os mesmos beijos abraços antigos
na testa ardendo a mesma febre terçã

na cabeceira rosários e abrigos
mais o injusto medo da sempre-maçã
enfim onde cabem nossos castigos
se nos queima o peito uma crença pagã?

mas eis que o amor cansou de estar tão velho
que de caduco na primeira esquina
de uma só queda partiu o joelho

no carnaval  -  pierrô/colombina
perderam rumo quebraram espelho
este soneto como é que termina?

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Júlio Saraiva
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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

TEMPO


o tempo está cansado
de ser tempo
de dar tempo
ao tempo
o tempo principalmente
está cansado
de sofrer de tanto
contratempo

o tempo não aguenta mais
perder seu tempo
perdoando o tempo
e ver passar o tempo
como se a vida fosse
só um passatempo

o tempo fechado no mau tempo
ignora as previsões
e cai fora do tempo
procura um outro tempo
e por saber que não há mais tempo
senta-se no vazio e põe-se
a matar o tempo


23-08-12
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Júlio Saraiva
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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

AGNUS DEI

agnus dei
dai-me asas
asas leves
para voos
sempre breves

agnus dei
dai-me a moça
da janela
não me importo
se ela é pura
ou cadela

agnus dei
dai-me a infância
que perdi
vendo coisas
que eu menino
não devia ver
mas vi

agnus dei
dai-me um porre
sem ressaca
que eu tenho
alguma idade
e a cabeça
já vai fraca

agnus dei
fazei de mim
vilão da história
que eu nasci
torto assim
e me sinto bem
junto da escória

agnus dei
dai-me a paz
mas não a paz
do homem sério
esta eu dispenso
pois se bem penso
hei de tê-la
no cemitério


02-10-09

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Júlio Saraiva,
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sábado, 18 de agosto de 2012

OLHOS CEGOS SOBRE TELA

dentro do azul destes olhos mora o perigo
capaz de devorar a luz de qualquer dia
por milagre do artista bênção ou castigo
não me canso de olhar e caio em letargia

tão profunda que até me esqueço do castigo
por cobiçar o azul que causa letargia
deste par de olhos que me alerta do perigo
de ver cego e sem luz meus olhos qualquer dia

o artista já se foi... partiu também num dia
os olhos que pintou ficaram por castigo
ou bênção  -  mas na dúvida talvez perigo

da inveja do azul destes olhos-letargia
insana minha cobiça enfrenta o castigo
de ver cego e sem luz meus olhos qualquer dia

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Júlio Saraiva
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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

POEMA A OLHO NU

teu olho nu
ilude o poema

iludes as palavras
: estrelas presas
na lente do telescópio
que não tens

navegas
por turbulentos mares de vírgulas
exclamações te ufanam
interrogações te protegem
como um exército
armado de dúvidas brancas

que importa a hora
no relógio
do antigo mosteiro
se dentro deste teu olho nu
o tempo deixou de existir?

que importa o tempo?

a sarjeta descobre-te
a sarjeta deseja-te

melhor assim
: olho por olho
elas por elas

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Júlio Saraiva
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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

SONETO DA MATURIDADE

só por acumular erros antigos
já nem dou conta que a velhice é fato
ao longe avisto amadas e amigos
todos sorrindo no mesmo retrato

não temo a morte nem temo castigos
vou procurando manter-me sensato
planto maçãs onde nasciam figos
se hoje ressuscito amanhã me mato

torto é meu andar como este soneto
pouco se me dá se é de pé quebrado
a linha reta transformei em arco

não quero regras nem branco no preto
sou absoluto não troco de lado
e sigo só por conta do meu barco

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Júlio Saraiva
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quarta-feira, 15 de agosto de 2012

TOADA MEIO ENJOADA

deste pão preto não quero
desta água podre não bebo
deste fruto já não mordo
qualquer um eu não recebo

este incenso não me agrada
este mel me dá azia
quero um copo de veneno
e distância da poesia

não me falem mais em flores
dane-se toda a quimera
caso o telefone toque
não estou pra primavera

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Júlio Saraiva,
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terça-feira, 14 de agosto de 2012

POEMA PINTADO A DESENCANTO

tenho asas mas não sei mais como se voa
agora também pouco me importa saber
tomei pavor de altura
e penso que os pássaros existem apenas
na minha imaginação doente

tive um sorriso mas não me perguntem como
um dia eu o perdi na infância
vasculhei tudo o que pude
enfrentei ventos desafiei tempestades
sonhei sonhos que não devia na esperança
de encontrar meu sorriso
não o encontrei e com raiva prometi
nunca mais procurá-lo

tive o hábito de colecionar milagres
mas numa noite de desespero rompi com os
santos todos
deus com ódio de mim colocou-me
no banco dos réus antes do juízo final
se fui condenado ou não
até hoje ninguém me falou
mas acho que devo ter sido
porque vai dia vem dia descubro
que ainda continuo vivo
perdido no cu desta vida



13-08-12
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Júlio Saraiva,
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quinta-feira, 19 de julho de 2012

INTRODUÇÃO À LITERATURA


quando o poeta sierguéi iessênin achou que devia se matar
e se matou mesmo
vladimir maiakóvski - seu amigo -
puto com a atitude do camarada
dedicou-lhe um poema
onde aparece o famoso verso que atravessou a rússia
"Melhor morrer de vodca que de tédio"

maiakóvski - contam seus biógrafos - não era dado à bebida
talvez por isso
 se esqueceu do poema feito ao amigo
e achou tempos depois de se matar também
e se matou mesmo
com um tiro no ouvido

- poesia tem disso

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Júlio Saraiva
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POEMA AO OCASO

Doces venenos.
Voos cegos.
Silêncios inconformados.

- Cadê palavra?, pergunta a boca.

Os olhos pescam azuis ociosos.
A tarde faz o que pode.
E constrói a paisagem com uma procissão de nuvens enfermas.

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Júlio Saraiva
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NATUREZA-MORTA A CARVÃO NA MESA DE UM BAR

esqueço ao sol o poema
secando num varal de palavras soltas
o poema tem os braços abertos
e o olhar perdido
como o do homem que ontem pela manhã
me veio pedir uma moeda

esqueço ao sol o poema
e antes que ele seque parto para a albânia
desenho um recado qualquer ao ocaso
pedindo que nenhuma palavra me acenda a memória

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Júlio Saraiva,
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quinta-feira, 28 de junho de 2012

PÓRTICO

uma nuvem virou panamá
na cabeça do ocaso

os cães vinham de longe
atraídos pelo cheiro doce
das pedras no cio

o arcoíris soprava
aos ouvidos das águas
frases arrancadas do Livro de Jó

tu colhias a rosa-dos-ventos
com mãos de saudade

depois em passos de minério
retornavas ao princípio das coisas

- Todas as coisas

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quarta-feira, 27 de junho de 2012

4 POEMAS LITÚRGICOS

Para João Tomaz Parreira


INTRÓITO

As palavras vibram.
O Sol enche o Céu de exclamações.
Nós, náufragos desde a Criação,
Esperamos pela barca
Que nos levará de volta ao Caos.


KYRIE, ELÉISON

Sem terra
Sem trigo
Sem pão.


OFERTÓRIO

Dedos compridos, mãos engelhadas.
Sobre manchas de vinho, migalhas de pão.
Um pássaro canta sem se fazer notar.
Corpo nu deitado na relva.

- Momento lindo!


COMUNHÃO

O pão ázimo
dos aflitos
amarga
em minha boca.

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Júlio Saraiva
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S

sexta-feira, 22 de junho de 2012

QUIXOTESCO

sou pixote a bater-me com
moinhos de tempestade
falo só pela cidade
como se estar calado
fosse um divino dom

guardo no bolso do colete
alguma lembrança quase boa
do tempo em que eu cria nas coisas
mais o retrato de um santo
e também um estilete
que de tanto ser passado
jaz agora enferrujado

eu brincava de erguer castelos
mas os castelos ruíram todos
e o rosto que eu tinha
sumiu no meio dos destroços
tolice procurá-lo agora
debaixo de tantos ossos

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Júlio Saraiva,
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segunda-feira, 4 de junho de 2012

CIRANDA

ainda ontem me vi perdido na praça
a olhar as crianças os cães as pombas
os elefantes e os meus dias antigos
ainda ontem me vi perdido na praça
desesperado a me procurar
a me procurar a me procurar
entre as crianças os cães as pombas
os elefantes e os meus dias antigos
ainda ontem me vi perdido na praça
mas consegui achar o meu rosto
no rosto de uma mulher que gesticulava
falava sozinha e não parava de cuspir
depois encontrei os meus passos
nos passos lentos de um homem
que também caminhava na praça
de cabeça baixa como se estivesse a procurar
um documento um pente uma moeda
uma ponta de cigarro uma lua
um retrato de maria antonieta
um bilhete de loteria
uma página arrancada de um livro de flaubert
a haste de um girassol
ou qualquer outra coisa entre as coisas
perdidas na praça
qualquer outra coisa qualquer
que para as crianças os cães as pombas os elefantes
não tem a menor importância

os meus dias antigos


04-06-12

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Júlio Saraiva,
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sexta-feira, 18 de maio de 2012

POR SOB O SOL...




por sob o sol
minha sombra caminha
ao teu encontro

por sob o mesmo sol
que envolve e aquece o teu corpo
a certeza de amanhã tornar-me ao pó
já não me incomoda tanto



18-05-12
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Júlio Saraiva
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 17 de maio de 2012

SONETO MALCRIADO



não - não me peçam mais poemas de amor
respeitem meus versos desesperados
tão mal sucedidos esculhambados
por deus me façam este grande favor

deixem-me mudo com os meus palavrões
pois é deste jeito que eu me sinto bem
a poesia que faço é puro desdem
as palavras doces enchem-me os culhões

basta-me apenas o ar que respiro
de uma vez por todas foda-se o resto
que importa saber se presto ou não presto?

não sei escrever... apenas atiro
no fim da briga saio são e salvo
dane-se aquele que errou o seu alvo


17-05-12

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Júlio Saraiva
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terça-feira, 15 de maio de 2012

NA ESCURIDÃO




na escuridão o poema não dói tanto
a luz machuca o poema
provoca uma dor de faca afiada
e o sangue não estanca nunca

na escuridão as palavras parecem mais calmas
mesmo na dor são felizes
como aquele cego que tocava cavaquinho na praia
compunha marchinhas de carnaval
e mesmo sem poder ver a folia
enxergava melhor do que todos nós



15-05-12
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Júlio Saraiva
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SUGESTÃO PARA MAIS TARDE



nem licor de amora
e nem amaretto
chá de capim santo
com cianureto

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Júlio Saraiva
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BALADA DO TEMPO PERDIDO



- Para Cristiane


no tempo dos meus aniversários
- e aí já vai tanto tempo
eu brincava de ser alegre
disfarçava esta cara amarrada
dava um pontapé na gramática
e chorar não chorava

no tempo dos meus aniversários
minha mãe me trazia carinhos
meu pai me chamava de anjo
minha avó que era mãe da minha mãe
me amava em silêncio
como se eu fosse uma história
com um final bem feliz
e por isso não tinha final

no tempo dos meus aniversários
que eu já não me lembro quando
eu vivia tão distraído
tão longe das coisas do mundo
que um dia meu bem num segundo
me vi morto na contramão

no tempo dos meus aniversários
eu juro meu bem eu juro
eu não era assim tão cansado




14-05-12
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Júlio Saraiva
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MANHÃ



queria escrever um poema de amor
nesta manhã nublada
qualquer poema de amor
mas perdi a chave de casa
e com ela o rumo das palavras
na falta do que fazer
dobro a esquina às seis e quinze da manhã
entro no bar
e peço uma bebida forte



14-05-12
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Júlio Saraiva,
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sexta-feira, 11 de maio de 2012

DIA DAS MÃES

- para aquelas que embalam seus filhos mortos



suspiro de mulher cansada
na solidão nublada do quarto
um berço imaginário e vazio ao lado da cama
um choro feito de silêncio - e só
ardendo bem lá no fim-do-mundo da memória
lágrimas deixaram de ser lágrimas
mas o tempo impiedoso insiste
em traze-las de volta - sempre...
de que serve o poema nessas horas?



11-05-12

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Júlio Saraiva,
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POEMA ECUMÊNICO



o pastor anuncia que o fim do mundo está perto
o padre de rito romano desmente
o bispo ortodoxo diz que até pode ser
o rabino prefere não falar nada
a mãe de santo - na dúvida - canta pra exu em nagô
o poeta acadêmico concorda um pouquinho com cada um
como não tem nada a perder quer que o fim-do-mundo se foda
manda a moral pro caralho
afrouxa a gravata
e escreve um soneto safado pra mulher do vizinho



11-05-12
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Júlio Saraiva
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quinta-feira, 10 de maio de 2012

LAMENTO DO EU INDIGENTE



trago uma lua de plástico barato
escondida no branco do olhar
um breviário em latim na mão direita
na esquerda uma revista de mulher nua
dividido entre a oração & o desejo - sigo
o meu caminho sem nada esperar de mim

não preciso de óculos para ler os escuros
sei de cor todas as madrugadas por onde andei
sou grato pelas esmolas que me deram
só careço de alguém que me empreste algum remorso
para eu pagar as minhas multas

se eu morresse agora levava apenas
uma calça velha uma camiseta
um par de sandálias de lona & uma úlcera gástrica
os sonhos não - deixava todos por aqui mesmo
: bagagem demais me incomoda


10-05-12

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Júlio Saraiva,
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quarta-feira, 9 de maio de 2012

POEMA SEM DESTINO



esta dor que dói
como o sótão vazio
de uma casa abandonada
este olhar sujo de ruínas
estas palavras doentes de significados
este meu país desconhecido
sem nome sem bandeira
sem coração
que não aparece em nenhum mapa



07-05-12
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Júlio Saraiva,
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segunda-feira, 7 de maio de 2012

UM POEMA DE AMOR AO MEU AMOR

"Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja"
- Oswald de Andrade,no poema Ditirambo



o amor de cristiane é simples
sem cristais ouro ou prataria
sem modismos
sem medo de caminhar no escuro

quando cristiane se cala
seu silêncio toca na flauta
um chorinho do pixinguinha
e o que já era puro fica ainda mais puro
como as orações que as crianças
fazem na hora de dormir

refém deste amor
dou-me sempre por vencido
prometo não cochilar no cinema
deixo-me cair na armadilha boa da paixão
e invento palavras de sorvete com pedaços de abacaxi

o amor do meu amor é simples
como cantiga de roda
dessas que não se ouvem mais

o amor de cristiane é simples
como todo amor deve ser

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Júlio Saraiva,
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sexta-feira, 4 de maio de 2012

PARA SEFÉRIS

"A voz do Senhor por sobre as águas.
Há uma ilha."
- Giorgos Seféris -


pela porta escancarada
da sala
faço entrar um poema
de seféris

o mar vem atrás dentro de um ícone
e sem cerimônia diz
não suportar mais a memória sagrada
dos navios

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Júlio Saraiva
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terça-feira, 17 de abril de 2012

POEMA PARA JOSÉ CRAVEIRINHA

tua alma de tambor grita
algum vento forte bate em meu rosto
acordo em maputo
e tenho todos os sonhos do mundo
tu pedes apenas que te deixem ser tambor...

invado os sertões do meu país
sou mais um brasileiro
cansado de guerra
eu e as minhas guerras...

- coberto de pavor envelheço...
faz luar em maputo
enquanto escrevo teu nome no silêncio

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Júlio Saraiva,
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sexta-feira, 23 de março de 2012

FLAGRANTE ASSOBIO

no coração da faca
a lâmina brilha
mas não há qualquer
vestígio de sangue

impiedosa porém a noite
de punhos cerrados
agride o homem que passa
com passos perdidos

o homem cambaleia
e cai no colo da calçada

mesmo vazia a rua
sente pena do homem
e com um longo assobio
chama a morte
para lhe prestar socorro


23-03-12
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Júlio Saraiva,
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quinta-feira, 22 de março de 2012

POEMA DE UMA TARDE

não sabes com que elegância o tempo me observa
despreza a minha loucura numa casa de chá
entre biscoitos finos e delicadas porcelanas
dessas que a gente toca com todo cuidado
como quem afaga o rosto rosado de uma criança

posso acrescentar a voz de piaf ao poema
e uma chuva fina caindo lá fora
(piaf não - maysa)
uma mulher de vestido preto me acena
sorri e depois desaparece na fumaça do meu cigarro

não tenho pressa não preciso ter pressa
o próximo voo demora algumas horas ainda
não sabes com que elegância o tempo me mastiga


22-03-12

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Júlio Saraiva,
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quarta-feira, 21 de março de 2012

DUAS NATUREZAS VIVAS COM SILÊNCIO

1

sobre a escrivaninha
preso
à moldura prateada
o retrato de meu pai
lê e relê
os versos que faltam
para terminar
o poema

emputecido
o silêncio peida

2

sobre a cama desarrumada
a manhã ruminava a preguiça dos meus olhos
no tapete
- como que esquecido -
havia um gato da cor da tua ausência

o silêncio celebrava uma missa cantada

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Júlio Saraiva,
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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

CANÇÃO DO PARQUE BUENOS AIRES

bebês ricos
babás pobres

o velho judeu
na cadeira de rodas
dorme debaixo da sombra
de uma seringueira
seu sono é ensaio pra morte

babás pobres
bebês ricos

o velho judeu
quando acorda diz
ao enfermeiro
com a fala enrolada
que o brasil é a terra prometida
onde jorra leite e mel

bebês ricos
babás pobres

o enfermeiro está farto
de ouvir do velho judeu
histórias do tempo
em que ele vendia
casimira inglesa de porta
em porta

babás pobres
bebês ricos

o velho judeu
fez dinheiro e filhos fez
também
um dia veio o segundo derrame
e o condenou à cadeira
de rodas
(não vai mais à sinagoga)

babás pobres
bebês ricos

os filhos do velho judeu
deram-lhe netos
- três
o mais velho foi pra europa
notícias nunca mandou
o do meio vive no rio
onde tem uma banda de rock
a menina
estudada em londres
hoje só dá desgosto
se apaixonou por um motoboy
que mora na vila alpina

bebês ricos
babás pobres

o velho judeu
se assusta a cada menino
de olhos verdes
que passa correndo
num sobe-e-desce pelas
ladeiras do parque
mama ídiche desconsolada
em sua eterna agonia
queixa-se à cadela de raça
que a oitava praga do egito
desabafou sobre a família

babás pobres
bebês ricos

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Júlio Saraiva,
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EU, DESERTOR



Para José Carlos Capinan


"Não sou o mesmo de olhar vazio
E palavra sem consequência usada."
    - Capinan-

quando eu temia os dias escuros
o nunca-mais ficava muito perto
não precisava atravessar os muros
para fechar-me em meu próprio deserto

eu era o doido num quintal de apuros
trazendo o mesmo olhar encoberto
por divagar em caminhos tão duros
achava erro em qualquer meio-certo

 hoje me esqueci da minha bandeira
também da língua que falei um dia
o viver me foi louca bebedeira...

já que é pra morrer - seja na folia
poeta que fui foi só brincadeira
vergonha maior para a poesia

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Júlio Saraiva,
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domingo, 26 de fevereiro de 2012

KAVAFIANO

"mas quando a noite vem com sua força
(o corpo quer e pede),  ele de novo sai,
perdido, atrás da mesma alegria fatal."
- Konstantino Kaváfis -

da minha janela
isolado do mundo vejo
o poeta konstantino kaváfis
entrar no quarto de uma casa suspeita
da rue attarine acompanhado
de um efebo loiro de imensos olhos azuis
tendo apenas o breu dos séculos por testemunha

26-02-12

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Júlio Saraiva
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domingo, 19 de fevereiro de 2012

AS POMBAS E A CATEDRAL

as pombas da praça da sé falam
um silêncio alto mas só as pedras
da catedral conseguem ouvir

as pedras da catedral da sé relembram
para as pombas histórias de um tempo
nublado que trazem vivas na memória

ao anoitecer as pombas da praça da sé
ficam tristes como as mulheres que perderam
o paradeiro de seus maridos e filhos

as pedras da catedral da sé consolam as pombas
recitando trechos de missas antigas
as pombas respondem amém choram um pouco
e vão dormir enquanto a catedral permanece
acordada em sua eterna vigília

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Júlio Saraiva,
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POEMA PARA CRISTIANE

meu amor tem um sorriso triste
feito de alguma
qualquer uma
perdida madrugada
tem flauta doce nos lábios
música que não sei entender
tem primaveras nas mãos
cheiro de alecrim nos cabelos
tem nos olhos um poema de amor
que eu nunca vou escrever

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Júlio Saraiva,
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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

RABISCO

desenhei
uma tarde de sol para
enfeitar
os teus caminhos
logo
ao pôr-da-chuva

limitado
artista que sou
não demorou o sol
sumiu

e a noite
desabou escura
sobre o branco do papel
imaginário

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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

CAMINHANDO PELA RUA ADONIRAN BARBOSA

caminho com as mãos nos bolsos
pela rua adoniran barbosa
na verdade não é uma rua
mas um beco estreito
com casas geminadas
de uma outra época
quase todas com um pequeno jardim na entrada
a rua adoniran barbosa tem uma alegria triste

caminho com as mãos nos bolsos
assobiando um samba de adoniran barbosa
a alegria triste da rua
vem acariciar meu rosto

sou um homem antigo que perdeu a pressa
o tempo passa por mim sem que eu o perceba
o tempo agora é o que menos me interessa
chega uma hora que a gente não vive
apenas se repete


31-01-12 - madrugada
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Júlio Saraiva,
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domingo, 29 de janeiro de 2012

SONETO DE UMA MADRUGADA VAZIA

só quero descansar meu desconforto
no azul-escuro desta madrugada
e provar a sensação de estar morto
no colo de qualquer alma penada

que venha de drummond o anjo torto
e pela mão conduza-me à entrada
do purgatório que há de ser o porto
abrigo de uma vida desregrada

preciso colocar no esquecimento
as três mil e tantas coisas que não fiz
sentir a paz de um frade no convento

fingir que a sorte passou no meu nariz
tocar o barco sem constrangimento
se amanhã eu acordar mais infeliz

29-01-12

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Júlio Saraiva
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sábado, 21 de janeiro de 2012

MARCHA FÚNEBRE

- meio à moda de augusto dos anjos -

luar de dezembro
: em mangas
de camisa o luar
assiste ao
formidável enterro
dos nossos
últimos sorrisos

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Júlio Saraiva,
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MEU DIA DE MORRER ERA ONTEM...

meu dia de morrer era ontem
mas achei por bem adiar
mais uma vez adiar

vivo de adiar os meus dias
minhas horas não falam a língua do tempo
coleciono abismos dentro de mim
tenho acenos de adeuses nas mãos
e algumas facas no peito

amanhã será outro dia?
não - definitivamente não
faz muito que para mim todos os dias são iguais

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Júlio Saraiva,
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