“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

domingo, 19 de setembro de 2010

DESGRAÇA POUCA É BOBAGEM OU DEUS É BRASILEIRO

4 aluguéis vencidos
condomínio meu deus nem pensar
(despejo batendo na porta)
despensa vazia
telefone cortado
2 contas de luz atrasadas
relógio de pulso - lembrança do pai - penhorado
16 promessas de emprego
1 dente da frente quebrado
(maldito torresmo de bar)
angina pectoris
:a fila no posto é grande
e médico também não há

ô meu deixa pra morrer mais tarde
sábado tem loteria
mas se não calhar
a ponte das bandeiras
é aqui perto - dá pra ir a pé

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júlio

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

ORAÇÃO EM FORMA DE POEMA AO POETA FERREIRA GULLAR, NOS SEUS 80 ANOS

I

a vida tem cheiro?
o poema tem cheiro?
qual a cor da palavra bomba?
"Enquanto o mar bate azul em Ipanema..."
(ou no Leblon)
os tambores de São Luís acordam o dia
acordam o menino Periquito
que se descobre na quitanda do pai
e mija na Fonte do Bispo
mas se redescobre entre caixotes
a ler Y Juca Pyrama sem saber
que muitos anos depois viria o Poema Sujo
-tão Maranhão como nunca- parido palavra por palavra
no exílio em Buenos Aires
o menino Periquito
exilado em Buenos Aires
o filho de Dona Alzira
nascido José Ribamar Ferreira na rua dos Prazeres
o menino Periquito no Centro Cultural Gonçalves Dias
na Igreja de São Pantaleão
ou na Baía de São Marcos onde El-Rey Dom Sebastião
foi habitar saindo vez quando na noite
para visitar moças donzelas no escuro de suas alcovas
à falta da pílula as moças emprenhavam de El-Rey

II

vi o poeta Ferreira Gullar de perto (ou quase) duas vezes
faz mais de trinta anos
a primeira foi no campus da USP
durante um ciclo de palestras que a universidade promovia
o poeta não mudou nada
(só eu mudei)
ele é o mesmo que hoje vejo em aparições na tv
nas fotos dos jornais e revistas
os cabelos lisos e brancos
divididos ao meio
caindo pelo rosto (os ossos do rosto salientes)
gullar quando da primeira vez que o vi
havia voltado do exílio
Santiago do Chile
Moscou
Buenos Aires
- tantas pátrias para um homem que só sabia ser brasileiro -
vínhamos de uma geração esmagada
pisada pelos coturnos da ditadura
nossos diretórios e centros acadêmicos fechados
quando ele disse o Poema Sujo eu chorei
como podia podia uma voz tão forte sair daquele corpo franzino?
queríamos que ele autorizasse a publicação do poema
DENTRO DA NOITE VELOZ
em homenagem a Che Guevara
no nosso jornal literário rodado num mimeógrafo
da faculdade à revelia do reitor
foi a poeta Vera Torres - moça de rosto bonito e versos curtos -
quem se dirigiu a Gullar
o pedido de autorização era só um pretexto
para nos aproximarmos dele
tornei a vê-lo mais tarde no Rio de Janeiro
durante o carnaval
no desfile de escola de samba
ele tinha um copo de plástico na mão
a bateria da Unidos de Padre Miguel era forte
para que eu me aproximasse dele
uma tarde tive a impressão de cruzar com ele
na agitada rua 7 de Abril
mas acho que foi só impressão
miragem

III

a poesia meu caro
não conhece o tempo
a poesia principalmente não tem tempo
para pensar no tempo
a poesia constrói e conduz a seu modo o seu tempo
a poesia dispensa abraços e cumprimentos
mas a poesia também permite
que eu me sente a seu lado Poeta
na mesa de um bar qualquer
pode ser em São Luís
diante de uma travessa de arroz de cuxá
pode ser em Paris
Bucareste ou Belém do Pará
na Rocinha na Mangueira
em Vigário Geral ou Copa
em Botafogo ou Madureira
sem sair do meu quarto
atento a seus livros
como se estivesse a ler em seus olhos
poemas que eu queria ter feito
a palavra Liberdade que eu queria ter dito
como se eu estivesse preso com você
na mesma cela imunda
na Vila Militar
naqueles dias escuros
onde penso suas palavras
escritas em maços de cigarro
onde imagino um barulho infernal
saindo de bocas quietas
se assim foi ou não foi Poeta
fica sendo
hoje a noite tudo pode
hoje a noite nada contesta
que esta noite faça barulho
que a noite faça sua festa

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

ESSAS MULHERES: A POESIA DE ADRIANE BONILLO, EUNICE ARRUDA E MARTHA MEDEIROS

MAIS MERIDIONAL

Adriane Bonillo

Há um frio me prendendo nas partes tenras
a segunda parte me gruda à geleira
Minhas botas de pedra polida
afundaram na areia aberta

Não sou mais de terra

tenho endurecido no uivo do frio
tenho emudecido
tenho medo do vítreo
e uma neve imunda corta-me o cio
desde os eixos torcidos dos olhos

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TAREFA

Eunice Arruda

cabe agora
morrer o corpo

dia a
dia ir

me desacostumando
do rosto
que eu chamava meu

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CORTE E LASER

Martha Medeiros

ela disse:
olha, se você quiser
faço uma massa que só eu sei
compro um vinho chocante
e durmo na sua casa esta noite

ele disse:
prefiro encomendar uma pizza
e assistir ao jogo do Grêmio
sozinho
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As poetas:

Adriane Bonillo e Eunice Arruda,
São Paulo, Brasil
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Martha Medeiros,
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O VINHO NA POESIA DA PAULISTANA RENATA PALLOTTINI (*)

A BORDO DA ALMA

Esse vinho, esse vinho, esse vinho vadio!

Reteso a alma no avião de prata
que vai furando o espaço como um bicho.

Se bebêssemos todos, todo o tempo,
que delícia seria!
Sem problemas de fígado,
sem problemas de culpa
sem problemas de medo
sem problemas de vício.

A vida vindo a ser o que devia:
absolutamente agora
sem nenhum
outro dia.

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DE MADRUGADA

A vida é muito dura
pra se levar a seco.
Se os índios mascam coca
sabem eles.

Preferes Coca-Cola?
Preferes o dinheiro?
Preferes fazer compras?
Preferes a vitória?

A gente bebe vinho
e é bom, de madrugada.

É o que se pode fazer
quando não se pode fazer nada.

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AUSÊNCIA

O vinho verte ouro sobre o mar.
Bebe. O corpo é de estanho. Estão distantes
os limões e as azáleas de tua casa
as dores do passado e do presente.

Nada morreu, ninguém partiu e tudo é mel do Himeto.
Esta explosão de fogo não é mais do que o sol.
Bebe. O vinho tem força de delírio
e cura como o aroma dos pinheiros
das idades antigas.

Eu te amo no vinho
te amei na embriaguez.
Bebe. Hoje, como sempre,
amar é a primeira vez.

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(*) Todos os poemas foram tirados do livro
Esse Vinho Vadio (Massao Ohno Editor, São Paulo,
Brasil,1988).


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Renata Pallottini,
São Paulo, Brasil
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domingo, 5 de setembro de 2010

SONETILHO TORTO COM FLORES DO MAL

tiradas do quintal
flores que deste
eram flores do mal

pensando perfume
aspirei veneno
ah mundo pequeno!
faca de um só gume

cega de ciúme
no escuro pleno
vi a estrela vênus
falecer sem lume

do quintal tiradas
deste-me só flores
amaldiçoadas

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 4 de setembro de 2010

TAMBÉM FUMO DO MEU CIGARRO

Ao Mário Osorio

irmão - também fumo do meu cigarro
há anos pratico autodestruição
vim do barro devo tornar ao barro
muito bem guardado dentro do caixão

caso eu apareça não te assustes não
fantasma bom não deve ter pigarro
nem mesmo tosse seguida de escarro
que sempre causa certa má impressão

mas talvez dos dois me sobre um pulmão
prova de que na vida ainda me amarro
dá-me um cigarro isqueiro tenho à mão

fumo e vou em frente a viver de sarro
pouco se me dá se estou na contramão
pobre sigo a pé por faltar-me o carro

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

CONSELHO (NÃO CARTA) A UM JOVEM POETA

não perca seu tempo menino
poesia é luxo besta
não dá camisa a ninguém
não traz dinheiro
poesia é doença
dizem não ter cura

não perca seu tempo menino
poesia não enche barriga
poesia é vício
fábrica de suicidas

não perca seu tempo menino
ingresse na vida pública
vá ser juiz de direito
ainda que você ande torto
seu futuro estará garantido
dentro da toga a consciência
é o que menos importa

se não der certo na política
vá vender terreno na lua
em marte talvez plutão
case constitua família
faz muitos filhos na sua mulher
aumente a população
deste mundo de bosta

e se ainda assim não vingar
entre para um convento
terá casa e comida de graça
e a graça não lhe vai faltar
os poetas são seres perdidos
não perca seu tempo menino

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

MAÇÃS ARGENTINAS

meu irmão
que dorme na calçada
com a cara enfiada
numa caixa de maçãs argentinas
calça sapatos gastos
de caminhos percorridos
por outros pés

meu irmão
que dorme na calçada
com a cara enfiada
numa caixa de maçãs argentinas
não sonha com maçãs argentinas

meu irmão
que dorme na calçada
com a cara enfiada
numa caixa de maçãs argentinas
não sonha com nada
apenas descansa um pouco
do pesadelo diário

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

ELEGIA QUASE DIDÁTICA PARA UM PAÍS QUE UM DIA PERDEU SEU RUMO

minha rua era um rio sem água
que terminava na esquina
onde o bonde fazia ponto final
meu avô português discutia
com o fiscal espanhol
quando discussão acirrava
os dois faziam pausa
davam uma espécie de trégua
e concordavam que salazar e franco
eram lixo do mesmo saco
putas da mesma zona
(morte aos dois): o brasil
era um país abençoado - diziam
e tudo acabava bem
em risadas e copos de macieira
meu avô português e o fiscal espanhol
até que chegou 1964
e os militares desabençoaram o brasil
filhos da puta!
foram juntar-se a salazar e franco
no mesmo saco de lixo

só eu menino sabia que minha rua era um rio
sem água
sem barcos
sem peixes
sem a mãe d'água também
e portanto não ia dar no mar
a menos que a minha imaginação quisesse
aí sim o mar aparecia salgado e os poucos carros
que trafegavam viravam navios imensos
e iam juntar-se aos outros que eu inventava
eu não sabia de salazar
eu não sabia de franco
eu não sabia de putas
eu não sabia o que estava acontecendo
no meu país em 1964
e embarcava num desses navios
atravessava o atlântico e aportava noutras terras
porque nos meus 8 anos era permitido sonhar

quando os bondes deixaram de circular
o fiscal espanhol nunca mais apareceu
meu avô português morreu atropelado
perto da minha rua que era dele também
mas o rio tinha sumido
e os carros não viravam mais navios
nem a minha imaginação me levava
ao outro lado do atlântico
o brasil desabençoado tornou-se um país doente
e a propaganda do governo
espalhada por todos os cantos dizia:
"AME-O OU DEIXE-O"
"AME-O OU DEIXE-O"
"AME-O OU DEIXE-O"

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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