“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

POEMA NUBLADO



pesava um silêncio roxo de depois da missa
minha avó me levava pela mão à igreja de são geraldo
onde por acaso fui batizado
hoje esbarrando nos sessent'anos
olho o largo padre péricles em perdizes
: a igreja de são geraldo ainda está lá com sua fachada cinza
e em cima do altar-mor o mesmo são geraldo triste segurando um crucifixo

cônego ulisses salvetti que mancava de uma perna
me batizou em latim - sou do tempo do latim - já morreu
minha avó já morreu e meus pais também
para desgosto de minha avó não fui padre
: conheci mulher muito cedo
mas o cordeiro de deus me espia do alto e me perdoa
pensando bem eu não devia nunca ter sido poeta
: acumulei num só peito de homem todas as dores do mundo
e morri muitas vezes
: o prazer pelo álcool começou muito cedo

não deixarei herdeiro e nem herança
os sinos de são geraldo tocam as vésperas
já não creio mais que os santos façam milagres
nada mais espero de mim mas sigo
calado como o cristo morto na procissão de sexta-feira santa
minha mulher me olha com ternura
e me diz que amanhã vai fazer tempo melhor
: mesmo nublado eu acredito  -  a morte passa


18-11-12

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Júlio Saraiva
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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

SONETO INGLÊS DO MEU TEMPO


Aos meus pais, em memória.


neste meu tempo triste habita um velho
que por crer na sua fantasia envelheceu
abraçado aos cacos finos do espelho
riu-se da morte que o acaso lhe deu

seu casarão em tijolos um templo
mas veio outro tempo e mal o sucedeu
e servindo sempre de mau exemplo
escreveu nós onde devia ser eu

sendo um foram tantos os cadáveres
que de envergonhada a morte enrubesceu
escondida no colo das árvores
quando inda havia campas em mármore

com seus anjos tristes que a terra comeu...
(quem foi que roubou aquele tempo meu?)

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Júlio Saraiva
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OS POEMAS DE AMOR MORRERAM...


os poemas de amor morreram
de falência múltipla das palavras
: flores & coroas
não devem ser enviadas

no princípio era a miopia
mas não ligaram importância
: bastava um par de óculos - não resolveu
depois veio a cegueira irreversível
provocada pelo diabetes
: excesso de açúcar nas palavras
volta não teve mais

os poemas de amor morreram
pelo bem da poesia & dos poetas que vão nascer
não foi falta de aviso
: rilke já havia alertado
dos perigos dos poemas de amor

os poemas de amor morreram
: lágrimas são inúteis
os poemas de amor morreram
na mais cruel indigência
nenhum poeta custeou o enterro
nenhum sino dobrou choroso
nenhuma mulher desesperada cortou os pulsos
com a lâmina de barbear do amante
que fugiu para moscou com a trapezista
de um circo-fantasma
nenhum infeliz se atirou da sacada do prédio
de uma repartição pública qualquer
nenhuma adolescente se entupiu de barbitúricos
com bebida ordinária

os poemas de amor morreram
: - In Paradísum dedúcant vos Angeli
Requiéscant in pace."

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Júlio Saraiva
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