“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

SONETO DAS ETAPAS



o lúdico que ao vosso corpo ilude
agora na cadeira de balanço
vos traz a infância boa que tão rude
vadiava nua livre e sem ranço

foi-se o tempo e com ele a juventude
alçou seu voo num rápido avanço
maturidade em sua plenitude
passou breve sem pausa sem descanso

e na vossa casa enfim a velhice
sem bater entrou nada vos disse
sendo porém a fase derradeira

cochila com o gato no tapete
e de quando em quando canta em falsete
até que a morte encerre a brincadeira


19-12-12

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júlio

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

ALERTA SOBRE O POEMA



água esquecida na bacia
o poema tem alto teor de racumin
afasta-te dele  -  não chegues perto
porque o risco da tentação
é muito maior do que qualquer cuidado
foge pro teu canto
deixa que uma revista de TV te distraia
o poema é porta aberta para o vício
não percebes que a morte está sempre a rondá-lo?
o encantamento que o poema traz
é pura reinação do demônio que habita em cada um de nós


19-12-12

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Júlio Saraiva
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domingo, 16 de dezembro de 2012

VIRAÇÃO (sobre um poema de seféris)




"Morreram todos a bordo, mas o barco persegue o in-
tento que desde o porto vem buscando" (*)
- Giorgos Seféris -

a algazarra dos marujos mortos
parece ignorar o luto das pedras
setas indicando lugares
que o fim-do-mundo não quis

dever não cumprido
cheiro forte de maresia
o corpo do poema também jaz frio
no cais

nada mais a fazer
o barco se despede
e sozinho segue o seu destino
o mar em paz agradece


(*) Tradução do grego de José Paulo Paes

16-12-12

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Júlio Saraiva
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quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

MARÍA POLIDOÚRI



"Sou a flor roída pouco a pouco por um verme secreto..."
- María Polidoúri -


toca-me fundo o teu desespero de noites corroídas
mãos geladas acenando despedidas premeditadas
palavras bêbadas & olhares asfixiados
ruas compridas que iam dar sempre na porta da indigência
atenas com suas traças devorou teu corpo frágil
como se tua carne fosse toda feita de trapos
mais tarde paris foi a confidente que acabou por trair-te
mas nunca percebeste quanto veneno havia no vinho oferecidos
sob as luzes cegas daqueles lugares suspeitos

toca-me fundo a tua solidão de flores que já nasceram murchas
chuvas de verão que de nada serviam & pesados invernos
outonos que enchiam teu quarto triste de assombrações
as primaveras eram feridas que não iam cicatrizar nunca
todas as estações traziam-te a crua intimidade da morte
no entanto não querias mas um dia foste amada
quando achaste de querer já estavas morta


13-12-12
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Júlio Saraiva
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HISTÓRIA DE SANTO


quando lhe morreram os pais
(um se foi atrás do outro)
santo antônio do egito
também dito santo antão
santo ainda não era
talvez nem quisesse ser
deu parte dos bens a irmã
a outra deixou com os pobres
e foi viver no deserto
em oração dia e noite
de vez em quando o demônio
achava de ir perturbá-lo
então a coisa pegava
quebrando a monotonia
assim foi a vida de antônio
assim foi a vida de antão
morreu tinha mais de cem anos
dentro de sua caverna
com os dentes todos perfeitos


11-12-12

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Júlio Saraiva
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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

ELEGIA SOBRE OS MEUS DIAS CONTADOS


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"De tão lúcido, sinto-me irreal."
  - Dante Milano -



meu barco navega sobre os meus dias contados
com a calma de quem perdeu o medo do mar
não careço bússola - deixo-me conduzir pelas estrelas
e rio por saber-me um homem do passado

como prenda levo a lembrança dos meus mortos
as muitas bocas que a timidez me impediu beijar
as lágrimas que guardei e esqueci de derramá-las
as inoportuníssimas gargalhadas de deboche
alguns pedidos de desculpa levo comigo também

minha insaciável vontade de beber deixo por aqui
quem se interessar por ela faça bom proveito
(pode ser útil nos momentos de vazio absoluto)
meu livro de sonhos e meu canivete suíço
meu relógio que parou num meio-dia qualquer
pensei em deixar mas por capricho mudei de ideia
pequenos caprichos valem mais que uma fortuna

meu barco navega sobre os meus dias contados
com a calma de quem perdeu o medo do mar



11-12-12

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Júlio Saraiva
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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O ENJEITADO



na secção de achados & perdidos
do aeroporto internacional de guarulhos
jaz um poema de amor ao lado de um par de dentaduras
a mulher que o lia na sala vip com lágrimas discretas
de propósito fez deixá-lo na poltrona
e embarcou num voo noturno para copenhague


10-12-12

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Júlio Saraiva
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domingo, 9 de dezembro de 2012

ARMADILHA




tenho medo dos olhos
azuis que não tive...


09-12-12

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Júlio Saraiva
São Paulo, Brasil
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CRIME PERFEITO



pois foi assim - eu vi
: a moldura engoliu narciso
& o espelho levou a culpa


09-12-12
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Júlio Saraiva
São Paulo, Brasil
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sábado, 8 de dezembro de 2012

MARCHA-RANCHO

"Todos são príncipes e mandarins
E ao fim dos festins simples polichinelos..."
- Dança de Força -
Poema de Paulo César Pinheiro com música de Eduardo Gudin


um dia tive medo de adivinhar o mar
para não espetar o coração dos navios
nunca fui alegre - punha-me triste nos parques
minha mãe fazia as vezes e sorria por mim

então foi que os meus dias me vinham exaustos
uma mulher que guardei no colo da memória
espalhou pela rua toda que eu era poeta
e na minha tolice deu-se pois que acreditei

não aprendi música porque não quis nunca
mas sempre brinquei de inventar girassóis
qualquer dia desses prometo ir à falência

(que o dono do botequim não me ouça...)
os foliões desfilam tão alegres lá fora
e eu daqui da janela metido em meu tédio assobio...

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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BERCEUSE PARA CRISTIANE


no teu sono macio as palavras respiram
e o meu poema se refaz manso
como a criança encantada do brinquedo

no teu sono macio a treva desaparece
as minhas luas mortas reagem
e tornam a brilhar num céu sem fim

no teu sono macio os anjos existem
o tempo impiedoso descansa um pouco
e bocejando ameaça desistir de passar

no teu sono macio a imaculada canta
e o mundo todo de repente se encolhe
para poder escutar o seu canto de paz



08-12-12
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

POEMA



esgotadas todas as possibilidades de respirar
abro sem medo os meus olhos para a morte
meus barcos pedem paciência aos ventos
a tempestade de um dia agora parece tão calma
o silêncio me ensina o evangelho segundo os peixes
sem querer então me descubro rezando
diante de um altar de algas e espumas

não sinto cansaço ainda que me falte o ar
e ressuscito memórias velhas mas tão velhas
que me torno menino de novo a correr sem parar
o peso das marés que tenho nas costas não me incomoda
uma gaivota amiga me empresta o seu voo


07-12-12
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Júlio Saraiva
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