“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

domingo, 29 de novembro de 2009

CANÇÃO EM SOL SUSTENIDO PARA O SEU ANIVERSÁRIO

para adriane


hoje prometo que vou deixar de ser velho
e vestir minha melhor roupa de menino e cantar uma cantiga de roda
no lugar do batido "Parabéns a Você"
e mesmo pela manhã
ainda que o dia acorde nublado e com chuva
haverá um sol que colhi para lhe dar como presente de aniversário

convocarei os primeiros galos da madrugada
para que despertem com seus cantos a estrela da manhã tão preguiçosa
ladrão que sou furtarei também
com a conivência de lorca três ou quatro dos seus melhores poemas
com as devidas desculpas ao poeta por não conseguir escrever
nenhum outro melhor
por absoluta falta de competência
(merecia eu a bala na nuca)

convidarei para a sua festa
sylvia plath ana cristina cesar hilda hilst e também clarice
pedirei a elas de joelhos que não morram nunca mais
trarei todas de volta à vida
como seu presente de aniversário
já que sou tão pobre e nenhum ouro lhe posso dar

tome esta canção desafinada
(perdão!) cantada pela minha voz tão rouca de tanto desatinos
pedirei ao mar que não tenha fúria
aos rios que venham calmos ao seu encontro
aos peixes que me tragam numa rede tecida
com os longos cabelos de iemanjá
o poema que pensei para você
pedirei aos homens que não falem mais em guerras
que não produzam as fomes
pequeno que sou mesmo assim pedirei
às mulheres que não abandonem seus filhos
pedirei (como seu presente de aniversário)
que o mundo possa respirar um pouco
ao menos hoje
respirar um pouco
porque sei que amanhã tudo volta ao normal

(30-11-2009)
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

DITIRAMBO

A bem-amada me aguarda
com paraísos nos lábios
e pássaros nos dedos.

Minha bem-amada
é feita de chuvas distraídas.
No seu colo as nuvens se encolhem
e brincam de ninar as crianças mortas.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 24 de novembro de 2009

CANTIGA DO FUNDO DO POÇO





http://www.clesioboeira.com/meump3/julio.mp3


Procuro pela moeda
perdida no fundo do poço.
Não demora amanhece
e os desejos vão todos dormir exaustos.

Amigo, amiga:
- Procuro pela moeda,
mas vejo apenas meu rosto
no fundo do fundo do poço,
banhado de luas antigas,
vinte anos mais moço.

Procuro pela moeda,
Amigo, amiga...
E lá se vão vinte anos
no rastro de tantas mortes,
no fundo desta cantiga.

Procuro pela moeda
já gasta de tantos desejos:
vasculho pedra por pedra
e nem sinal da moeda
entre os escombros que vejo.

Amigo, amiga:
- Vinte anos mais moço
procuro pela moeda
no fundo desta cantiga
(cantiga dos afogados
que dormem no fundo do poço).


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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
declamado pelo poeta José Silveira,
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
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FADO PARA MARIO OSORIO, POETA, MEU AMIGO

tenho a quase louca impressão:
vi-te  a beber chá ou rum num qualquer café londrino
tinhas o cigarro ao canto da boca
e eu bebia e fumava também
 estávamos separados a poucos metros por uma mesa
e eu não tirava os olhos das pernas da garçonete com sotaque francês
corria o ano de 1956
ano em que por acaso nasci
lias alguns jornais no café
e reparei que a exemplo dos meus os teus olhos eram tristes
culpa talvez das notícias
depois bem depois soube que o amigo navegava
pelos mares de lisboa
amália ainda cantava
e podia se ouvir pelo rádio
mas sabes como é mario
quando a gente caça gilete para cortar os pulsos
procura sempre a veia mais azul
o sangue esguicha mais rápido
a hemorragia vem mais depressa
e a morte é um salto só
mas neste tempo eu ainda estava no ventre da mãe
não tinha ideias suicidas
e nem planejava escrever nenhum poema

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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LUZ PERPÉTUA

para Manuel Bandeira (do Brasil), como queria Drummond

"Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis."

(Manuel Bandeira, in A Cinza das Horas)

"Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" -"Não foi!"

(M.B., in Carnaval, poema declamado pelo poeta Ronald Carvalho,
durante a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo,
em fevereiro de 1922. Recebido sob vaias, por um plateia burguesa e moralista, fez valer a Manuel Bandeira
o epíteto de "O São João Batista do Modernismo".)


Por ocasião da Primavera,
o conselho supremo dos patos
do lago do Ibirapuera
pede um minuto de zoeira
em solene homenagem aos sapos
do poeta Manuel Bandeira.


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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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VERSOS DE FORA

coma-me,  possua-me,
esfrega na minha cara o que tens.
sou puta de rua mesmo.
me troca por mais outros dois.
me joga no lixo depois.
me faz gozar no teu corpo.
dorme depois feito um porco...
eu juro não te acordar

(mas não te esqueças  que fui tua mulher
um tempo, algumas horas talvez.)

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Annabárbara,
Rio de Janeiro, Brasil
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

VENTURA

Quem sabe meter pelo maço
no bolso uma
concha tentada
A nota com nota na quase
intenção de rasgar o desvelo
: “encontre-me aqui e suba depressa comigo”
Quem sabe na esquina
o olho -grau onde queima um carro
Primeira marcha: abrir uma praia em tear
Contrário, na quarta, romper a fechada
em tapete
Num vidro bonito que acima do ombro
quem sabe dormir sem querer
ouvir sem querer e disso querer migrar
Quem sabe morrer
sem deixar por acaso
Pautar desnecessária a voragem
Omitir-te assim tudo isso
A outro por nada entregar
Quem sabe dizer?

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

o->

A Grécia é o mar.
O mar é a minha calma.
A calma é o mar grego.

Eu estou calmo.

Eu sou a Grécia.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

ANNA, ANTES DE O CHÃO

Rota na pele
Pisa que cheira a cascalho
do cais rumo à praça catorze
Olhos sem ranço de pena
Fruto de um podre que verga,
olha
Cheia,
ímã nas patas de mosca larva
Trai só de boca
com sangue
Ela a balada
irmã das sirenas:
choro de mãe triste puta, olha
Disse-lhe a meia lua uma foice:
- Não se demora com
os pés pelo porto

Não se demora, por isso, vai suja-amarela
Não sangra por isso, corre
mastiga com força o gosto da terra
Corre ao próximo homem,
anda
antes de o chão vir comer-te
porque precisa, Anna

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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CANTO A MIGUEL TORGA, O POETA DA LIBERDADE

"O universal é o local sem paredes."

- Miguel Torga -


um metro e setenta e sete
tinha o poeta de altura
o corpo todo magreza
no olhar tristeza tão dura
punha oculta a beleza
pouco exibia candura
era assim o doutor adolfo
irmão daqueles que desde cedo
desenhou-se a vida dura
pro mundo foi miguel torga
gênio da literatura

seus hábitos trasmontanos
ele trouxe para o brasil
onde viveu alguns anos
sob os cuidados de um tio
mas atendendo à saudade
doída da aldeia natal
tratou de juntar-se ao povo
sofrido do seu portugal
torga adotou por nome
que é planta do chão agreste
e com a voz inconteste
gritou alto contra a fome
gritou contra a força do mal
disse não à censura
abaixo à ditadura
desafiou o general

no entanto quem o bem canta
cedo perde a razão
o ditador se alevanta
e dá-lhe por prêmio a prisão
aljube tem por destino
e por alimento água e pão
então riu-se todo o burguês
engordou de satisfação
vendo que o camponês
ficou longe do seu irmão

mas posto em liberdade
mais forte o poeta voltou
cantando a sua verdade
cantando as águas do douro
cantando as mágoas do tejo
cantando o correr do mondego
seu canto jamais se calou
nem quando perdeu a guerra
pra morte em câmara lenta
passado já dos noventa
se a mão da inimiga apanhou
adolfo correia rocha
miguel torga continuou
seu canto em toda parte
na boca de alguma gente
nos sonhos que sempre sonhou
de um mundo assim sem paredes
livre das fomes das sedes
não preso só aos limites
do mapa do seu portugal
um mundo de uma só língua
todos num único barco
sem comandante na proa
quer no brasil quer em goa
o mesmo sol o mesmo sal
em angola em moçambique
em são tomé guiné-bissau
no timor em cabo verde
também nos confins de macau
quem sonha não vê distância
tira a capa da arrogância
sonha um sonho universal

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 17 de novembro de 2009

PÓRTICO

Uma nuvem virou panamá
na cabeça do ocaso.

Um colibri fechou os olhos
da folha morta.

Os cães vinham de longe,
atraídos pelo cheiro doce
das pedras no cio.

O arco-íris soprava
aos ouvidos das águas
frases arrancadas do Livro de Jó.

Tu colhias a rosa-dos-ventos
com mãos de saudade.

Depois, em passos de minério,
retornavas ao princípio das coisas.

-Todas as coisas

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Júlio Saraiva,

São Paulo, Brasil

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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

OUTRO INDIGENTE



http://www.clesioboeira.com/meump3/CDST-%20outro%20indigente.mp3

Murmúrios
da fome.

Palavras nulas.

Sem travessão,
sem interrogação,
sem exclamação,
vírgula...
Com ponto final.

Palavras
emudecidas.

Apenas
um olhar,
driblando-as.

a do Retirante
cambaleante.

Sem prumo,
sem rumo,

Arrastando,
o que lhe resta.

Na fresta da vida,
na sarjeta.

cai.

Sobre o ombro,
o peso do olhar,
extático.

Olhar refletido,
na vitrine
do bar,
no mar.

Por passantes;

é pisado,
cuspido,
humilhado.

um corpo;

alheio,
inerte,
caído.

Óbito refletido
na vitrine do bar,
refletindo...

um morto,

velado
pela brisa
do mar.


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José Silveira,
Niterói, Rio de Janeiro,
Brasil
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sábado, 14 de novembro de 2009

TRÍPTICO

O retrato de Edith Stein em hábito carmelita
e o de Santa Teresinha do Menino Jesus
aos oito anos, sete antes de se fechar no convento.

No meio deles, o teu
com o olhar dourado a indicar-me o portão de saída do paraíso.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

DEPOIS

O escuro pesando nas copas,
a bolsa de tinta membrana remando seu polvo, eras assim
perfeito eu perfeita contra o equilíbrio das folhas
antes do raio
Embora eu não saiba eras ainda
na testa incendiada de sombra
aquilo que apago molhando nas costas da mão
Costas ao lado
cúmplice farta e farto sem rosto
eras, como quem larga da faca o visgo dum crime
: a luta anônima
Como quem pisa descalço no pátio
do sono
lavado por arrebentar uma fábula
Reajo à dormência do pó
à prata reajo a soma dos planos
Embora eu não saiba o escuro pesado
sussurras em mim
a espécie de fato que somos
"Somos um fato"
repito como quem fala
pesado no sonho: fui tudo e tudo e tudo
e perco o sonho
Depois
perderia o raio

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

SONETO

Às vezes sou louça fina,
às vezes barro grosseiro.
Às vezes deito menina
e choro no travesseiro.

Às vezes me acho na esquina
à caça de aventureiro
e digo que a minha sina
é dar por qualquer dinheiro.

Às vezes sou Colombina,
cheirada de cocaína
no fogo de fevereiro.

Às vezes sou peregrina,
tão frágil, tão pequenina
rezando p'lo mundo inteiro.

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Annabárbara Lins,
Rio de Janeiro, Brasil
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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

ALEXANDRE (O GRANDE) O'NEILL

Por Mario Osorio,
Lisboa, Portugal


Alexandre O'Neill (Lisboa 19 de Dezembro de 1924 - 21 de Agosto de 1986). Fundou, em 1948, com Mário Cesariny, José Augusto França e outros, o chamado "Grupo Surrealista de Lisboa". O grupo distinguiu-se pelo seu posicionamento abertamente contra o neorealismo e o regime, tendo retirado nesse ano a colaboração com a III Exposição Geral de Artes Plásticas, por recusar a censura prévia. O reconhecimento da sua poesia veio apenas dez anos depois, com a publicação do livro "No Reino da Dinamarca" (1958). A sua obra, além de poesia, contempla ainda traduções e antologias. Contudo, foi na publicidade que O'Neill trabalhou a partir da década de sessenta. São ainda hoje conhecidos os seus slogans "Há mar e mar, há ir e voltar" (do qual se lamentou por não o ter resgistado), "Ele não merece, mas volta no PS" ou "Bosch é bom". Preso pela P.I.D.E. ( a polícia política portuguesa da época da ditadura) por diversas vezes, foi ao longo do tempo desviando-se dos círculos e tertúlias, não se filiando em qualquer actividade partidária. Morou no bairro do Príncipe Real, em Lisboa, num velho prédio da Escola Politécnica, onde encontrou Pamela Ineichen, com quem manteve uma relação amorosa na década de 60. Quiseram dar-le uma medalha, a Ordem de Santiago e Espada. Respondeu, por escrito, que não aceitava porque era ele quem estava em dívida para com o país -"Sou contra, era a forma mais simpática de dizer não." Em Abril de 1986 sofreu um acidente vascular cerebral, fruto de uma vida desregrada, que o levaria a internamento prolongado no hospital, acabando por morrer em Agosto desse ano. A sua literatura combina com elementos de vanguarda artística, do quotidiano e da sátira, com neologismos, humor e absurdo.

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M.O.

Lisboa, Portugal
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AUTO-RETRATO (Um poema de Alexandre O'Neill)

O'Neill (Alexandre), moreno português
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...

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Alexandre O'Neill
Portugal
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SE O ALEXANDRE O'NEILL APARECER

Se o Alexandre O'Neill aparecer
De luto, e mão erguida
Contra a poesia que escreveu
Em vida
E esquecida, depois morreu,
Façam o favor de lhe dar limonada
E digam que fui eu
- Que não estive no "Orpheu" -
Quem lhe rogou a praga

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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PARA ALEXANDRE O'NEILL

"Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse..."
(Alexandre O'Neill)

também bebo demais e rio-me
das penas deste purgatório - não o de torga -
que construí para mim mesmo
tenho pesadelos terríveis em decorrência do álcool
sonho sonhos de necrotério
ainda ontem alexandre vi meu corpo nu
exposto na morgue
acordei suando frio
fui à janela e olhei para o céu
havia uma gorda lua cheia debochando de mim
pela manhã tive a certeza de que continuava vivo
olhei meu rosto no espelho
e reparei que meus olhos estavam mais tristes
do que de costume
a puta da minha vida tem disso
as mulheres me roubam a consciência de homem
nessas horas queria ser o poodle da minha vizinha
come bebe ignora o tempo e vive cercado de mimos
esta vida do caralho está sempre a nos dar bananas
agora dei de beber pela manhã
gosto do desprezo com que me olham no bar
o sofrimento para mim é um vício que não vou largar nunca
escrevo meia dúzia de poemas e me dou por satisfeito
tenho a capacidade de morrer quando quero
mas o porteiro do prédio onde moro não sabe disso
minha vizinha diz que sou louco
de vez em quando até sou
(louco de saudade de mim)
sempre quando converso comigo acabo em discussão
desculpe se o poema está ruim
amanhã cedo faço outro melhor

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 7 de novembro de 2009

PALAVRA ANCORADA

pesada e leve a palavra
quando ancorada no porto
sem a água que me lavra
a escura terra do corpo

nessa maré não rebenta
no ar a vela não corre
...tudo passa, nada tenta.

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Alexandra Cruz Mendes,
Guimarães, Portugal
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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

CANTO DE AMOR AO RIO DE JANEIRO



in voz:  http://www.clesioboeira.com/meump3/ESPEC-julio-canto-amor-ao-rio.mp3


Ao poeta José Silveira, amigo e irmão - consagro


a maior declaração de amor que tiveste
saiu da pena de um pernambucano
o gordo antônio maria - jornalista
cronista e compositor
que certa madrugada caiu fulminado por um enfarto
numa calçada em frente a um restaurante
em copacabana
na flor dos seus 43 anos
resultado dos incontáveis croquetes e empadas
regados a generosas doses de uísque
prazerosos venenos que podem fazer mal ao corpo
mas fazem um bem danado à alma

"Rio de Janeiro, gosto de você
Gosto de quem gosta
deste sol, deste mar, desta gente feliz..."

- rezam os versos do bom Maria em Valsa de uma Cidade

rio quanto não bebi do teu mar
rio amado rio
paulista que sou deixa-me chamar-te meu rio
não importa que me caia a maldição
da garoa da terra onde nasci

rio meu rio
quantas vezes meus olhos namoraram
teu cristo redentor à distância
teu cristo enormes braços abertos
convidado-nos a todos para um abraço de paz
meu pavor por altura impediu-me amar-te de perto
nunca andei no bondinho do pão de açúcar
mas conforta-me saber que o pai sempre perdoa
e abençoa o filho mesmo pródigo

lembro-me dos filés no lama's que não existe mais
amarelinho veloso antonio's
tudo é passado mas tão presente dentro de mim
o chope honesto
o luxo da vieira souto
a pobreza da favela
a beleza cheia de graça das tuas garotas de ipanema
hoje não tão garotas assim
méier arpoador barra leblon
tijuca jardim botânico
as casinhas humildes de olaria
quase todas iguais
os arcos da lapa -berço da malandragem que não conheci
o milésimo gol de pelé
saído de uma penalidade contra o vasco da gama
só podia acontecer mesmo no maracanã
o maior do mundo

amo-te meu rio amo-te
amo-te mais do que o meu amor supõe
por isso rogo a são sebastião
em cujo dia consagrado comemoras tua fundação
que te guarde sempre das flechas da desigualdade
saravá são sebastião! okê odé!
por isso rogo a são jorge
teu padroeiro de fato
que te defenda do dragão da maldade
saravá são jorge! ogunhê!
por isso rogo a todos os santos e orixás
proteção a ti meu rio
saravá minha portela! águia guerreira
copacabana me engana
copacabana eterna princesinha do mar
amo-te meu rio!

(Obrigado, Silveira!)
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
declamado pelo poeta José Silveira,
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

CENA FECHADA

a reza guardada em meu peito
é como a bala plantada no teu
: flor vermelha aberta em grito

por debaixo das capas
os copos tilintam o silêncio
brilha a faca sobre a mesa
um foco de luz incendeia os olhos da musa

: tranco a porta e engulo a chave

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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AMACIANTE

O rosto de Beauvoir estampa o rosa-inessência
da camisetinha que estica-se atenta
à prosa
da ferrugem nos varais
Nota como as golas macho e fêmea
mais se abrem ofendidas quando o engulho
de um pescoço exasperado vem e venta
ele não reivindica
chove antes

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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NERUDA

depois da fabricação do amor contigo
perdi-me em ruas diagonais, entre as pessoas cinzentas
e meu corpo ainda quente, sob a chuva

a água veio sobre mim, lúcida
sem que eu sentisse
o cais verde-arrombado frente ao rio
entre as pessoas cinzentas
e meu corpo ainda quente
depois da fabricação do amor contigo

e o rio dilacerava meu coração aberto
nas margens comprimidas do encanto-azul
despertando l'oeil de dieu, nossas ruas cinzentas
onde caminho só
sob a chuva

e tu sabes como sempre sinto esse perfume, como se fosse
um poema escrito por Pablo Neruda

depois da fabricação do amor contigo

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

PARA SABER QUE ESPERO

"O que pretendes me dizer?
Cuidado, filho, o chão alucina."
- Fabrício Carpinejar -

O excesso: tua fumaça sem filtro
que parte no dente um fio de rosário.
Espalham-se contas no chão e outras manhãs
cospem cinza em cortejo
à dor de enterrar tua dor na reza dos dedos.
Uma falha de unha agora
o excesso que foste nas mãos como duas estátuas
sem branco possível passado.
Como esfregar tuas mãos e dormi-las para sempre, ao mesmo tempo?
Aquilo que pousa na água transforma-se em poça
e umedece o caminho
de uma fissura no lábio esquerdo.
Há esperança onde desmorona uma escultura seca?
Que corredor interminável de ecos
diria a meu pai sem perder-me como um labirinto,
sem chamá-lo Pai, antes de tudo ou baleia perdida da outra?
Há esperança por último
Há esperança no meio da boca
Não disse ainda o início, há esperança.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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SONETO DE LOUVAÇÃO AO UÍSQUE

é sempre bendito este malte escocês
remédio da minha alma tão doente
doce equilíbrio de tanta insensatez
anjo bom em vigília permanente

se vez em quando me rouba a lucidez
é por culpa de eu ser um descontente
expulsa pra longe toda a timidez
fonte de paz se a guerra está presente

"cão engarrafado" - o chamou vinícius
e não me atrevo enfim a contestá-lo
o mais querido do rol dos meus vícios

bebo no copo puro ou no gargalo
e assim eu o saúdo dose em dose
sem medo que me mate de cirrose

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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de Ofício VI

O que você me der, nesta casa se aceita. Não agradeço, não. O dado não se agradece, antes vasculho atenta e uso. Uso que é pra vestir-me do outro, na sua intenção de ceder.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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de Ofício V

Um amigo no tempo sereno me reconcilia com o que estou por dizer.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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NOTA

enquanto eu lia
o jornal no quarto
ela estrangulava
seu cãozinho de pelúcia
no banheiro

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 3 de novembro de 2009

HOMENAGEM A VINÍCIUS DE MORAES

Corria o Ano da Graça de 1913, quando a 19 de outubro Marcus Vinícius da Cruz de Melo Moraes veio ao mundo no bairro da Gávea, Rio de Janeiro. Mas passou quase toda a infância na Ilha do Governador. E ainda na infância, acompanhado da irmã mais velha, foi ao cartório e - não se sabe como - conseguiu convencer o tabelião a lhe reduzir o nome. Marcus Vinícius da Cruz de Melo Moraes ficou sendo Vinícius de Moraes.
Poeta, compositor e diplomata. Apóstolo da paixão e homem do mundo. Cassado de suas funções diplomáticas pelo ato institucional n° 5, o AI-5 de triste memória, por meio de um breve e estúpido despacho do não menos estúpido e cretino general Arthur da Costa e Silva, uma réplica de asno embrulhado em farda, segundo presidente da ditadura militar instalada no Brasil a partir de 1964: "Demita este vagabundo", dizia o despacho, misteriosamente desaparecido e até desmentido hoje pelos cúmplices da ditadura que ainda vivem.
Aposentado compulsoriamente, o "vagabundo" continuou sua missão, espalhando pelo mundo poemas e canções, porque do ofício de poeta nem a morte tem poder para demitir quanto mais um miserável general. Vinícius passou desta a 8 de julho 1980, no seu Rio de Janeiro, já não tão seu e um tanto diferente. Morreu na banheira de sua última casa, ao lado do amigo e parceiro Toquinho e de sua nona mulher, Gilda. Da morte em "O Deve e o Haver", ele escreveu: "Ela virá me abrir a porta como uma velha amante/Sem saber que é a minha mais nova namorada." O jornalista José Castello, maior biógrafo de Vinicius, conclui seu livro "O Poeta da Paixão" assim: "Vinícius de Moraes viveu, amou, escreveu, cantou para fugir da morte. Para negá-la. Todos nós fazemos o mesmo. Mas só um se chamou Vinícius de Moraes."
Algo mais a dizer?

Júlio Saraiva

DOIS POEMAS DE VINÍCIUS DE MORAES

SONETO DO AMIGO

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Los Angeles, 7/12/1946

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HISTÓRIA DE ALMA

Meia-noite. Frio. Frio em tudo
E mais frio que em tudo, frio na Alma
A Noite grande e aberta... A Alma grande e aberta...
Infinitamente frias...

No alto a noite má seguia a Alma que vagava
Enregelada e nua entre todas as almas
Seguia a Alma presa
Presa por todos os lados
A Alma caminhava e a noite caminhava com ela
A Alma fugia e a noite perseguia a Alma
E a Alma parava. Então a noite também parava
E mandava um frio mais frio do que a Alma

E a Alma já fria tornava a caminhar
E a noite vinha e perseguia a Alma
E a Alma parava... e a Alma parava...
E chorando ajoelhada pedia perdão...

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Do livro Jardim Noturno,poemas inéditos.
Organização e seleção de Ana Miranda,
Companhia das Letras, São Paulo, Brasil,
1993.

POEMAS PARA VINÍCIUS

DO POETA MORTO

Da vida esta aventura sem ventura,
Parte o cantor legando-nos seu canto,
E a morte surge como surge o pranto
Na face da paixão que inda perdura

E do silêncio que se faz ternura,
E da alegria que se faz espanto,
A rua desmanchada no acalanto
E o verso-estrela numa noite escura.

Parte ficando em tudo quanto amou,
Nos gestos que sangrou de veia aberta
E na canção dos corpos que habitou.

E aquele que do amor fez sua vida,
Conquista na paixão que lhe desperta
A morte essa mulher desconhecida!

_______________________________
Paulo Bomfim,
da Academia Paulista de Letras,
São Paulo, Brasil
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RIMAS

Rimei Vinícius com vícios,
mas não foi por ser cobarde,

só que estava num hospício
e eram muitas da tarde

ali à espera das drogas
para cuidar das maleitas

e apareceu-me de toga
uma pomba tão escorreita,

tão negra, com tais arrulhos,
que caí no precipício:

e afrontei os engulhos
e encontrei o Vinícius.

Só que os vícios do Vinícius
não são vícios, são virtudes:

e até rimam com solstícios,
violões e alaúdes

e baladas, violinos
elegias, tanto mais...

(Apesar do "gato morto"
só não rimam com ataúdes).

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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O TIJOLO
para Vinícius de Moraes

anda um homem
feito besta
a dar cabo do coirão.
tijolo em cima
de tijolo
constrói mais um prédio
para o patrão.
enquanto o operário
se alimenta
com barro e pó
o patrão usurário
enche o bucho
a lagosta e pão-de-ló.
dizer sim
a tudo o que
quer o patrão
é sua sina
sem nunca
poder dizer não
aos que lhe
negam o pão.
e tijolo,
após tijolo
o operário prossegue
a sua construção.
lutando por
permanecer de pé,
pegando a vida
pelos cornos.
até que pelas costas,
um tiro lhe dão.
e porque deixa,
de tijolos fazer,
oferecem-lhe
como prémio
um espaço
entre meia dúzia
de tábuas.
dão-lhe enfim
descanso!
deixa de ser
escravo,
porque hirto,
gélido
e sem qualquer
préstimo
para tijolos fazer.
agora,
resta-lhe aguardar
pelo patrão
numa terra onde,
(porque iguais são)
lado a lado
ficarão eternamente
a fazer... tijolo.

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Eduardo Roseira,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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PRESENÇA DE VINÍCIUS

"Porque hoje é sábado."
- Vinícius de Moraes -

entro na sala e encontro o poeta
juntos erguemos nossos copos
e brindamos saúdes antigas

o poeta fuma
eu fumo também como se cumpríssemos
a um ritual secular
- cedo demais para beber e fumar tanto...

o poeta se ajeita na poltrona e ri
vinícius não morreu - concluo
hoje não
hoje vinícius não pode morrer

vinícius está bem vivo aqui comigo
na sala
vinícius bebe e fuma comigo
na sala

vinícius respira tranquilo
ao poeta hoje
não é dado o direito de morrer

acordem as amadas
todas as amadas
e as mal-amadas também

hoje não é dado ao poeta
o direito de morrer
porque hoje é sábado

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

de Ofício IV

Reativa, eu me firmava, muito em contraosso ao que seja pró-atividade, palavra asquerosa de terno, gravata e vaselina. Depois dei por mim nessa imprecisão, que minha única ação genuína é agressiva. Lama da grossa, preta de suja, pura de imediata. De resto, eu não me afeto na hora, me ajeito no atraso. De resto, eu me acumulo mais tarde, eu sou depois do chá. Sou depois do expediente dobrado.
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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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de Ofício III

Fui sempre tão tímida que se me mexo na vida e vivo é por puro descaramento meu.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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QUANDO CAMÕES LER A MINHA LÍRICA

Quando Camões ler a minha lírica
De estética forçada à ironia
A nossa época vazia
Será adivinhada.

Nem grandes, nem pequenos.
(Vivemos ao alcance do olhar.)

Tudo aquilo que temos
É - pela frente -, o mar.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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EXTRA MUROS

acordou às cinco, às seis rezou no parque, às dez enfrentou fila no banco. conformada, voltou ao apartamento, conferindo o dinheiro. quieta, meteu-se em tarefas domésticas. e foi aí que se lembrou de Teresa de Ávila, a grande doutora da igreja, em suas atormentadas reflexões místicas: "Deus está presente até nas panelas..." nas panelas, ela disse consigo mesma, enquanto engolia o almoço de quiabo com carne. "Deus está presente até nas panelas... tardezinha, escutou confissões atormentadas, deu conselhos, profanou, sentiu vontade de rezar, como o fizera de manhã, mas não no velho Livro de Horas, cheio de culpas e arrependimentos, que jazia no criado-mudo. quis rezar, sim. por isso foi à estante e apanhou Garcia Márquez, o seu anjo Gabriel. leu, bebeu frases e imagens, sentiu comichões na alma. chorou um pouco e compreendeu, pela primeira vez, a rigidez da vida extra muros.

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Rosangela F.C. Borges,
São Paulo, Brasil
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O MONGE

vai em passos lentos o velho monge
a caminhar pelo jardim do claustro
seus olhos estão cansados
as lentes dos óculos gastas
de percorrer os mesmos caminhos feitos de silêncio
as páginas do seu breviário não suportam mais
as mesmas orações o mesmo latim

vai em passos lentos o velho monge
não se recorda mais como foi a primeira vez em que
penetrou nos mistérios da clausura
não se recorda mais o dia da profissão dos seus votos
perpétuos - castidade obediência e pobreza
não se recorda mais quando recebeu do abade o livro com as regras
escritas por são bento - o pai fundador:
-"Escute, meu filho, os preceitos do mestre
e incline o ouvido do seu coração."
o velho monge não se recorda mais também do nome secular
o nome que lhe fora dado pela família quando estava no mundo
não se recorda mais... faz tanto tempo - melhor não recordar mesmo

vai em passos lentos o velho monge
tantas vezes foi preciso lutar contra os desejos da carne
tantas vezes castigou o corpo na solidão da cela
tantas vezes abafou o sorriso dos lábios
porque do sorriso deus não se agrada
tantas vezes durante os pesados jejuns da quaresma
despejou cinzas no prato para tornar intragável
o sabor do parco alimento servido

vai em passos lentos o velho monge
entra no cemitério do mosteiro
olha as sepulturas todas iguais - apenas uma cruz e um nome
martinho beda plácido basílio
todos nomes de santos da sua ordem
adotados pelos irmãos séculos depois
todos repousam ali onde ele repousará um dia
quantas sandálias são necessárias para chegar ao reino dos céus?
que julgamento deus fará dele se não foram raras
as vezes em que seu pensamento se desviou
para as coisas do mundo
quando devia estar voltado para o Livro de Horas
quantas vezes profanou durante o Canto Gregoriano?

vai em passos lentos o velho monge
algo estranho lhe invade a cabeça
sente nojo de deus sente ódio de deus
se pudesse assassinaria deus agora mesmo
agora mesmo
agora mesmo
foda-se o reino dos céus
foda-se deus
se pudesse...
mas como não pode culpa-se mais uma vez
retorna ao jardim do claustro
e resignado prossegue a leitura do seu breviário

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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ILUSIONISMO

As mãos
traga ao trabalho do peito
só em parede abre
a amplitude de si para o travo quente
branco, pai, que espora aflita
acolhe este cego em delírio
:o rio, o curso d'água no tronco
também um tronco altivo no seu carvão
torce
desenha a pedra plena onde nasce a zebra
ela ergue-se limpa
some
ao seu comando

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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