“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

AIS OU MENOS

(oração pela descrença)

Senhor,
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.
Quero forças para o salto
do abismo onde me encontro
ao hiato onde me falto.
Por dentro de mim, a pedra,
e, aos pés da pedra,
essa sombra, pedra que se esfalfa.
Pedra, letra, estrela à solta,
sim, quero viver sem fé,
levar a vida que falta
sem nunca saber quem é.

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Paulo Leminski,
Curitiba, Paraná
(não morreu e nem
vai morrer nunca)
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3 brindes para celebrar a memória de leminski

"Viver de noite
Me fez senhor do fogo.
A vocês eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse eu mesmo carrego."

-Paulo Leminski-


1.

deve ser mesmo o fim
:bebi a estrela da manhã
com gelo e gim


2.

de cartola e fraque
uma rã mergulha num
tanque de conhaque


3.

1 litro de saquê
:bashô baixou em mim
ou terá sido você?

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 29 de abril de 2010

NOTURNO PARA UMA MULHER TRISTE

ao poeta Dantas Mota, com respeito, em memória, pela alta poesia que nos deixou - consagro, num brinde de lua cheia

"Que sol triste, meu Deus? Sol do mundo
Pelos cemitérios de almas sobejas,
Que a terra em terra e céu repartem
E neles ficamos a sós, sem lã, balido, ovelhas."

(Dantas Mota, em Elegias do País das Gerais)


há uma mulher triste
& sem memória
que espera por mim
em frente ao lago verde
do parque ibirapuera

há uma mulher cansada
& triste
de tanto esperar por mim

não tem mais beleza nenhuma
as rugas
comeram-lhe a face
no entanto ainda é triste
e está a esperar
por mim

passou frio fome & sede
enfrentou mil tempestades
furacões fora de hora
desprezou partidos de bem
eram homens moços sérios
alguns com brasão de família

mas ela permanece ali
triste a esperar por mim
porque ainda ontem
bem cedo
na porta do ibirapuera
perdi a carteira de identidade
e o passaporte também
e não tenho como chegar

(era menina & dizem que foi bonita)

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 27 de abril de 2010

ARCA DE NOÉ

-para João Carlos Pádua-

Nasceu
Fudeu
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Cacaso
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LERO-LERO

Sou brasileiro
de estatura mediana
gosto muito de fulana
mas sicrana é quem me quer
porque no amor
quem perde sempre quase ganha
veja só que coisa estranha
saia dessa se puder

Eu sou poeta
e não nego a minha raça
faço verso por pirraça
e também por precisão
de pé quebrado
verso branco rima rica
negaceio dou a dica
tenho a minha solução

Não guardo mágoa
não blasfemo não pondero
não tolero lero-lero
devo nada pra ninguém
sou esforçado
minha vida levo a muque
do batente pro batuque
faço como me convém

Sou brasileiro
tatu-peba taturana
bom de bola ruim de grana
tabuada sei de cor
4x7
28 noves fora
ou a onça me devora
ou no fim vou rir melhor

Não entro em rifa
não adoço não tempero
não remarco o marco zero
se falei não volto atrás
por onde passo
deixo rastro deito fama
desarrumo toda trama
desacato satanás

Diz um ditado
natural da minha terra
bom cabrito é o que mais berra
onde canta o sabiá
desacredito
no azar da minha sina
tico-tico de rapina
ninguém leva o meu fubá

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Cacaso (Antônio
Carlos de Brito),
Uberaba, Minas Gerais,
1944, Rio de Janeiro,
1987. Poeta, letrista
de música popular e pro-
fessor universitário. Cola-
borou em diversos jornais
da imprensa alternativa, contrário
ao regime militar instalado na época. Mor-
reu acometido de um enfarto
aos 43 anos.O poema Lero-Lero,
que dá título à sua coletânea
de poemas, foi musicado por
Edu Lobo
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O FAZENDEIRO DO BAR (para não esquecer cacaso)

"Mar de mineiro é colinas
mar de mineiro
é minas"

(Cacaso)

mar de mineiro é tão fundo
mar de mineiro é tão raso

mar de mineiro dá azo
pra se contar outro caso

mar de mineiro é o dia
sem validade de prazo

mar de mineiro é poesia?
mar de mineiro é cacaso
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 25 de abril de 2010

SURTO

p/Torquato Neto, que eu não pude conhecer.

"eu sou como sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim."
(Torquato Neto)


o dia invade a carne
alfabetos de pavor me escurecem
sou mais realista que o rei

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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MAMÃE,CORAGEM

mamãe mamãe não chore
a vida é assim mesmo
eu fui embora
mamãe mamãe não chore
eu nunca mais vou voltar por aí
a vida é assim mesmo
e eu quero mesmo
é isso aqui

mamãe mamãe não chore
pegue uns panos pra lavar
leia um romance
veja as contas do mercado
pague as prestações
- ser mãe
é desdobrar fibra por fibra
os corações dos filhos
seja feliz
seja feliz

mamãe mamãe não chore
eu quero eu posso eu fiz eu quis
mamãe seja feliz
mamãe mamãe não chore
nunca mais não adianta
eu tenho um beijo preso na garganta
eu tenho um jeito de quem não se espanta
(braço de ouro vale dez milhões)
eu tenho corações fora do peito
mamãe não chore, não tem jeito
pegue uns panos pra lavar leia um romance
leia "elzira, morta virgem,"
"o grande industrial"

eu por aqui vou indo muito bem
de vez em quando brinco o carnaval
e vou vivendo assim: felicidade
na cidade que eu plantei pra mim
e que não tem mais fim
não tem mais fim
não tem mais fim

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Torquato Neto,
Teresina, Piauí, 1944,
Rio de Janeiro, 1972.
Poeta, jornalista e letrista
de música popular,a grande voz,
apesar da timidez, do movimento
Tropicália, suicidou-se
um dia depois do seu aniversário.
Foi talvez o maior ícone
da poesia marginal brasileira, ao lado de Ana Cristina Cesar, Cacaso e
Paulo Leminski.
Este seu poema, musicado
por Caetano Veloso, é um anúncio claro do
que ele já pretendia fazer. Sua obra, de versos
incrivelmente bem trabalhados, como um digno conhe-
cedor do seu ofício,curta e notável, é toda marcada pelo
desejo obstinado da morte.Deixou uma coletânea de poemas
e artigos póstumos, Os Últimos Dias de Paupéria, organizada
pelo poeta Wally Salomão, também falecido.
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terça-feira, 20 de abril de 2010

PARA ANA BOTAFOGO(*)

as pernas da mulher
miúda
jeito de menina
parecem parar no ar
como se fossem um delicado par de asas
os movimentos do corpo constroem azuis
parece saída de uma frágil caixinha de música
mimo que hoje não se faz mais
fino cristal
seu voo é graça
os passos de ana botafogo riscam
círculos no círculo
brincam arcos infinitos
como se só ela e sua dança estivessem no mundo
o tempo esqueceu de passar
eu como mortal comum aplaudo a bailarina

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(*)anna botafogo, carioca, é
considerada uma maiores baila-
rinas clássicas do mundo, o que
não a impediu, no entanto, de sair um
pouco do tablado para desfilar no
afalto, numa escola de samba, na
marquês de sapucaí.
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 18 de abril de 2010

São Paulo

Fascinada por são Paulo ela fez as malas
Entretém a idéia de ver o poeta
Qual deles? Serão tantos os loucos e prenhes de outras?
Poemas e poetas vivem cambaleando nas ruas nuas da madrugada temerosa
A prosa comenta, ao ver a gente de rua, enroscada no metrô da madrugada crua
Come a pizza do dia a dia ao ler os livros da cultura.
Conversa e dá linha aos garçons da boemia,
Solta as pipas dos arranha-céus,
Mestres, dançarinos da cultura viva, onde Krio, funk, samba, jazz,
Todos viram 24 horas nos ritmos roucos
E dançam a rumba na chuva que atropela a bailarina.
E na rua, na lida, a vida é colorida na “25 de março” em abril.
E a carioca mulher nada conversa.
Muda-se e some.
Adeus Ilhas desertas que ficaram lá atrás.
E São Paulo, muda a conversa apressada,
Sente nada, corre atrás do tempo e o vento que batia forte nas areias de Copa,
Ipanema prosa, adeus à saudosa maloca,
Vendeu-a por menos que um conto de reis.

Diana Balis de mudança.Rio de Janeiro 18 de abril de 2010.

sábado, 17 de abril de 2010

TEIA

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia,não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
prenhe:

no
centro
a aranha espera.
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Orides Fontela,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 13 de abril de 2010

ABUSEI...

abusado da ideia
no cinema foi cavalheiro
foi de leve: só beijo de língua e bem devagar
em copa dois chopes
fumei um baseado na praia
falei o que não queria
e fui com a mão onde não devia
ele disse que me amava
joão lucas também me amava
o porteiro do prédio também
sou vulgar demais quando quero
já tinha visto este filme antes
na dúvida o arrastei pra cama
me pegou de jeito
gozou e dormiu depois
enquanto ele sonhava com a lua
eu pedi à camareira do hotel agulha e linha
fiz as vezes da minha mãe
e preguei o botão na minha blusa de inverno

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annabárbara lins,
rio de janeiro, brasil
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sexta-feira, 9 de abril de 2010

SÓ PARA SABER O QUE ACONTECIA

8:30 AM- Hoje acordei
8:32 AM- Mal disposta
8:33 AM- Fiz um broche a dois dedos
8:50 AM- Não disparou
8:50 AM- Não matou
8:50 AM- Não morri
8:52 AM- Enfiei os dedos em mim
8:52 AM- Fingi que éramos os dois
8:53 AM- Não me molhei
8:54 AM- Não traí ninguém
8:55 AM- Não aconteceu nada
8:55 AM- Não morri
8:55 AM- Não matei

8:30 AM- Hoje acordei

8:32 AM- Mal disposta

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Maria João Mesquita,
Porto, Portugal
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EU ESCREVI UM POEMA...

eu escrevi um poema
para uma mulher triste
uma mulher que eu não sei quem é
nem ela sabe quem eu sou

eu escrevi um poema
para uma mulher triste
rosto marcado por rugas precoces

eu escrevi um poema
para uma mulher que eu nem sei quem é
sei apenas que é triste
e tem o rosto marcado por rugas precoces

eu escrevi um poema
para uma mulher que eu nem sei quem é
e nem ela sabe quem eu sou
mas é uma mulher triste
rugas precoces no rosto
e uma criança nos braços
a sugar-lhe o seio murcho

eu escrevi um poema triste
para uma mulher triste
que estava sentada num degrau da escadaria
da catedral da sé de são paulo
com uma criança nos braços
a sugar-lhe o seio murcho

eu escrevi um poema triste
mas o poema não vai mudar a vida dessa mulher triste
que estava sentada num degrau da escadaria
da catedral da sé de são paulo
sem que o arcebispo metropolitano
tomasse conhecimento da sua existência
o arcebispo metropolitano é cheio de afazeres
não tempo para mulheres tristes

a mulher triste nunca vai saber quem eu sou
nunca se ocupará em ler
o meu poema

eu escrevi um poema triste
para uma mulher que tem tristeza demais
e nenhum interesse em saber o que é um poema

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 8 de abril de 2010

EVOLUÇÃO

um dia o barro será safira
a safira será flor
a flor será borboleta
e a borboleta será um sonho
na mente de um santo
que almeja chegar até Deus

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Antônio Abel Fernandes,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Estreito de mim

O calor que sinto quando me atropela
No estreito de Gilbratar
O valor de mera angústia que assola
A entrada furta ao íntimo da alma
Em passagem secreta ao amor
A estética abertura sem tirania
Ao gosto de torpor soa animal
Mas as vontades em fluídos resguardam
Ávido de sátiras de verbo atracar
O amor repousa em bom apetite.

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Diana Balis,
Rio de Janeiro, Brasil
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domingo, 4 de abril de 2010

HENDRIX EM MONTEREY

                    
                                              
                                         
C  O
H  D             
A  N 
M  I                
A  B
S  U
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Bruno Sousa Villar,
Lisboa, Portugal
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A AVE

arisca
a ave arrisca
o voo

de seu
nada deve a ave
ao céu

de si
nada deve a ave
a deus

a ave voa
voa voa e vai

do céu
a ave avista
o mar

do céu
a ave acena ao mar
o mar não tem asas

a ave
sabe inventos
para provocar os ventos

na intimidade
com as alturas a ave
beija o ar

a ave voa
voa voa e vai

se brinca de ultraleve
a ave quando cai
cai em queda livre

a ave sobressai
a ave sobrevoa
a ave sobrevive

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 3 de abril de 2010

AUTO-RETRATO

só por acumular erros antigos
já nem dou conta que a velhice é fato
ao longe avisto amadas e amigos
todos sorrindo no mesmo retrato

não temo a morte nem temo castigos
vou procurando manter-me sensato
planto maçãs onde nasciam figos
se hoje ressuscito amanhã me mato

torto é meu andar como este soneto
pouco se me dá se é de pé quebrado
a linha reta transformei em arco

não quero regras nem branco no preto
sou absoluto não troco de lado
navego só por conta do meu barco

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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A PROCISSÃO E O MENINO RUIVO DA PROCISSÃO

  • Com a cidade vazia, é possível até pensar, enquanto se caminha. Não sou, já fui, homem de fé. Mas ontem achei que devia assistir à uma procissão. Eu disse assistir, entendam. Fui à igreja Nossa Senhora Achiropita, bem perto de onde moro. Passava um pouco das seis. A procissão, fui informado, ia sair dentro de uma hora. Em frente ao templo, dois bares abertos. Num deles, cerveja, cachaça e samba comiam soltos. Confesso que gosto demais dessa comunhão entre o sagrado e o profano, que, dizem os entendidos - antropólogos, sociólogos e historiadores das religiões -, sempre existiu. E tanto isso é verdade que o pároco da igreja contava com os equipamentos de som da Vai Vai, a escola de samba do bairro, para que todos, mesmo quem não quisesse, pudessem acompanhar a procissão na rua, ouvindo com nitidez os cânticos e as orações.
  • Os equipamentos, porém, apesar das relações estreitas da escola de samba com a igreja,  não chegaram a tempo. O motivo não sei, mas entendo que acidentes de última hora sempre acontecem. Evidente, a procissão não deixou de sair, apesar dos resmungos de algumas senhoras, que tomaram a ausência dos equipamentos como pouco caso dos diretores da Vai Vai com a  igreja. Mas, convenhamos, equipamentos de som são coisas de uma época recente. Noutros tempos, as procissões saíam sem eles e os sacerdotes se esgoelavam, horas a fio, recitando as ladainhas, comentando as catorze estações da via-sacra, puxando as cantorias - e ainda, na volta à igreja, havia o sermão que, dependendo da inspiração do representante de Cristo, podia durar horas.
  • Na década de 1930, o arquiteto e artista plástico Flávio Carvalho escapou de um linchamento, no centro de São Paulo, por verdadeiro milagre. Irreverente e provocador, gênio para uns, louco de hospício para outros, ele quis testar a reação dos fiéis que acompanhavam à procissão de Corpus Christi. O teste consistia em caminhar em sentido contrário e dar de encontro com a procissão, ainda por cima sem tirar o boné. Blasfêmia total. Fiéis mais exaltados, partiram para cima do herege. E a tragédia só não aconteceu porque o artista, ainda jovem, teve pernas para chegar até um bar nas imediações e trancar-se no banheiro, de onde só saiu escoltado pela polícia.
  • Enquanto me recordo do episódio envolvendo Flávio Carvalho, ocorrido quando eu nem sonhava em nascer, volta-me à memória um fato mais ou menos semelhante em que o protagonista fui eu. Com um detalhe: minha idade, não mais que seis anos, foi levada em conta. E só por isso nada de mais grave me aconteceu. Juro que o que vou contar é a verdade, nada mais que a verdade.
  • Era Semana Santa. Viajei com meus pais,  Deus os tenha, mais um grupo de amigos deles para Águas de Lindóia, no interior de São Paulo. Cidade chatíssima, mas, na época, famosa pelas propriedades terapêuticas de suas águas. Naquele tempo, os da minha faixa etária sabem, procissão era procissão. Nas casas, nas ruas, no semblante das pessoas, tudo era luto, tudo era culpa, tudo era dor. E, para dar um toque mais morbido ao ritual, as igrejas ficavam às escuras, iluminadas apenas pelas velas e os santos todos cobertos de roxo. Dos altares  retiravam-se as toalhas e as flores. E não havia, como não há até hoje, a celebração de missas, mas apenas leituras.   
  • Dava medo, principalmente quando o silêncio era quebrado pelo som da matraca, seguido do cântico comprido e histérico da Verônica. O Cristo Morto, com o rosto ensanguentado, vinha na frente, levado por membros de alguma irmandade, que disputavam essa honra quase a tapas. Atrás, aparecia a Virgem, com as espadas cravadas no coração.  Depois o sacerdote, de sobrepeliz e estola roxa, seus acólitos e por fim os fiéis. Nenhum comércio abria. Das janelas das casas, as pessoas, também compenetradas, assistiam à passagem do cortejo. Os homens, nas esquinas, tiravam seus chapéus, reverenciando o morto. Nas cidades pequenas, onde o fanatismo, digo, a fé era maior, caso de Águas de Lindóia,  a procissão seguia pelos bairros principais, o que levava um bom par de horas, até retornar à matriz. E foi exatamente no largo da matriz que protagonizei talvez o maior espetáculo que a cidade das águas terapêuticas pôde presenciar durante uma procissão. Não sei se alguém o registrou, mas, cá entre nós, bem que merecia..
  • No coreto do largo, foi improvisado um púlpito para o sacerdote fazer a homilia. O povaréu, em silêncio. Todos desgraçadamente preparados para assumirem, mais uma vez, a culpa pelo assassinato na cruz do filho de Deus. Até que minha mãe deu falta de mim. Olhava para os lados, eu não estava. Meu pai procurava manter a calma. Os amigos, informados do desaparecimento, saíram à minha procura, entre eles um judeu, que gostava de me ensinar palavrões. E, graças a ele, apesar da pouca idade, meu vocabulário já era bastante rico em palavras obscenas.
  • Foi uma amiga da minha mãe, que mais tarde se casaria com o judeu, meu professor de palavrões, que veio com a notícia. Cutucou minha mãe e apontou para o coreto. Eu, menino de cabelos ruivos e espetados, rosto sardento, estava no coreto bem ao lado do sacerdote, esperando o momento certo para o ataque. Minha mãe não chegou a tempo de evitar o pior. Antes que o sacerdote anunciasse a criança perdida, eu já lhe havia tomado o microfone das mãos e proferido, alto e bom som, algumas palavras de protesto e indignação: "Judeus da filhos da puta. Vão pra puta que pariu. Vocês mataram Jesus Cristo."
  • Se minha mãe não fosse jovem, com certeza cairia fulminada ali mesmo. Não me lembro de ter sofrido qualquer castigo físico. Mas sei que retornamos todos ao hotel. E, no dia seguinte, logo  cedo a São Paulo. O feriado tinha chegado ao fim.
  • Meus pai morreu há quase trinta anos. Minha mãe foi embora há três meses. Ontem, na igreja, enquanto um grupo de jovens da comunidade encenava, diante do altar, as estações da Via Sacra, eu vi ao meu lado o menino que fui. Cabelos ruivos, rosto sardento, inquieto, malcriado e cheio de vontades como todo filho único. Tive desejo de abraçá-lo. Mas quando olhei para o lado, ele não estava mais. Senti um aperto na garganta. Não pelo Cristo morto, porque amanhã, Domingo de Páscoa, tudo vai acabar bem. E Ele vai ressuscitar, como acreditam os que têm fé. Não vou discutir dogmas e nem mistérios. Da mesma forma como  fiquei na igreja o tempo necessário e acompanhei toda a procissão sem pedir nenhuma graça. Não teria cabimento alguém que não crê pedir graça. Até porque se Deus achasse por bem concedê-la não estaria sendo justo.  Só lamentei por Judas, culpado até hoje por uma coisa que não tenho certeza se de fato fez. Todos conheciam Jesus de Nazaré. Pregava na sinagoga. Para prendê-lo não seria preciso um beijo.Mas em toda história, para que exista um herói, é necessário um vilão. Sem o vilão, o herói não existe. Duvido também que Maria assistiu a tudo o que fizeram com seu filho sem nenhum escândalo. Mãe judia morre pelo filho. Da mesma forma, entendo eu, a Igreja transformou Barrabás num malfeitor. Não foi bem assim: Barrabás, como o seu xará - ele também se chamava Jesus - era um revolucionário, que queria a liberdade do seu povo, mas por outro caminho - o das armas, como eu também quis um dia.
  • Foi pensando nisso tudo que voltei para casa. Tomei um copo de vinho, fumei um pouco, enquanto escrevia estas linhas, e depois fui deitar com a televisão ligada. Adormeci, deixando a porta dos sonhos aberta para que o menino ruivo entrasse. Mas ele não veio.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 1 de abril de 2010

ISABELLA, MAS POR QUE SÓ ISABELLA NARDONI?

Esperei a poeira baixar para comentar o caso da menina Isabella Nardoni, cujo julgamento dos acusados de sua morte, ocorrida há dois anos, aconteceu na semana passada e despertou comoção não só em São Paulo como no país inteiro.
Não me vou reportar à fatídica noite de 28 de março de 2008. Todos sabem o que aconteceu. Também não vou opinar sobre o veredito anunciado nas primeiras horas de sábado, após o julgamento que durou cinco dias e uma hora mais ou menos, terminando com a condenação dos réus Alexandre Nardoni e sua companheira Ana Carolina Jatobá, pai e madrasta da menina, a 31 e 26 anos de reclusão respectivamente. Até porque a sentença de Alexandre e Ana Jatobá foi apenas oficializada, uma vez que a mídia e a opinião pública já haviam condenado os dois por atecipação.
Sou jornalista há trinta e quatro anos. Iniciei minha carreira, mais por falta de opção do que vocação, aos dezenove, na redação do extinto Diário da Noite, na rua Sete de Abril, 230, em São Paulo. Comecei onde, na época, quase todos começavam  -  cobrindo assuntos policiais, vendo a morte de perto e tomando um banho de sangue por dia.
Não me arrependo. Aprendi muito com a reportagem policial, que me deu elementos para a literatura que hoje faço. E me arrisco até a parafrasear o polêmico dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues: "A reportagem policial me fez amigo íntimo da morte."
Felizmente, talvez  por questão de formação, não perdi a sensibilidade, o que nem sempre ocorreu e ainda ocorre, embora hoje nem tanto, com  alguns colegas de profissão. Nunca anos peguei numa arma, nem mesmo descarregada e sempre tratei acusados, vítimas ou  parentes e policiais da mesma maneira, procurando agir de acordo com os fundamentos básicos da ética jornalística. Jamais admiti também que presos, por pior que fossem, sofressem qualquer agressão ou constrangimento na minha frente. Sei de colegas que não só assistiam como colaboravam nas sessões de espancamento de  acusados dentro de delegacias, além de participarem da  divisão de propinas com policiais corruptos. É triste, mas acontecia -
não sei se ainda acontece. Mas isso agora não vem ao caso.
Isabella, mas por que só Isabella Nardoni?!, repito a pergunta que dá título a esta crônica.
Fácil e doloroso responder. Todos os dias os noticiários estampam casos de violência envolvendo crianças de todas as idades e classes sociais. E não só em São Paulo ou Rio de Janeiro. Mas no Brasil e no mundo
inteiro.
Mas acontece que nem todas as pequenas vítimas são Isabella Nardoni, garotinha meiga, bonita, nascida numa família de posses, com direito a almoçar e jantar todos os dias mais o privilégio de frequentar escola particular, além de ter para  si festinha de aniversário e presentes no Natal e tudo o mais que todas as crianças deveriam ter e não têm.
Num município ou bairro qualquer da periferia de São Paulo, não vou me lembrar ao certo, dois irmãos, na faixa dos onze anos - Isabella tinha cinco -, depois de passarem algum tempo sob os cuidados do conselho tutelar, uma picaretagem do estado que não serve para nada, em razão dos maus tratos que recebiam do pai e da madrasta, foram devolvidos,  porque representantes da entidade acharam por bem que o lugar deles era na casa paterna, embora os dois  relutassem. Criança pobre não tem querer. As encomendas então voltaram para o  inferno. Resultado: o pai e a madrasta, não contentes com as torturas diárias, acabaram por matar, esquartejar e incinerar os dois irmãos. No começo, a imprensa até deu destaque ao caso. Mas depois, bem não me perguntem. Talvez eu não seja mais tão bem informado e não vou saber responder. Quem sabe os colegas na ativa possam dizer.
Alexandre Nardoni, hoje com 31 anos, comportamento de doze, ao que consta, nunca mostrou disposição para o trabalho. Formou-se em direito, é verdade, mas não se sabe onde e nem como. Dizem que manifestou vontade de seguir a carreira de delegado de polícia. Mas resistiu, preferindo continuar na doce vida às expensas do pai, o também advogado Antônio Nardoni.
Ana Carolina Oliveira, 24 anos, ficou,  para usar a linguagem da moda, com Alexandre até Isabella completar onze meses. Bancária , tipo mignon, bastante graciosa e meiga, deve ter balançado, dor da perda à parte, muitos corações durante o tempo em que apareceu na mídia, pedindo justiça para os assassinos da filha. Evidente que Ana Carolina não queria holofotes, muito menos da forma como vieram.
Sai Ana Carolina entra Ana Carolina na vida de Alexandre. Coincidências existem. Ana Carolina Jatobá, 26 anos, ou apenas Jatobá, como ficou conhecida, logo se revelou o oposto da xará e mãe de Isabella. Rosto duro, olhar frio, dizem que era, agora atrás das grades não mais, pavio curto. Tinha ciúme até das cuecas do companheiro, e, evidentemente, jamais convidaria a xará para um chá no 6° andar do edifício London, onde passou a viver com Alexandre e os dois filhos do casal, o mais velho, Pietro, com três anos. Contam os vizinhos que Ana Jatobá tinha um vocabulário nada polido, ou seja: estava mais para Dercy Gonçalves, no auge da carreira, do que para Cecília Meireles. Roupa suja, dependendo das circuntâncias e da tonalidade de voz, costuma ultrapassar os limites da casa.
É provável, agora parece certo, que a "tia Carol" não morria de amores pela pequena Isabella. A menina, muitas vezes, ao retornar  das  visita à casa do pai, onde tinha um quarto todo seu, aparecia com hematomas e marcas de mordidas nos braços. Quando a mãe lhe perguntava o motivo das marcas, Isabella dizia que fora o irmão. Se estava ou não dizendo a verdade, ninguém sabe e nem saberá.
Consumada a tragédia da noite de 28 de abril, outras personagens vão entrar nesta história. A primeira, a delegada Renata Correia, plantonista na delegacia que atendeu à ocorrência, e que, desde o início, teve certeza que o casal estava diretamente envolvido no crime. Mas a estrela maior apareceria um pouco depois. Francisco Cembranelli, 49 anos, promotor de justiça, casado com uma defensora pública, pai de dois filhos e nas horas vagas conselheiro do Santos Futebol Clube,  foi a principal personagem desta história. Tem ao longo de sua carreira mais de mil atuações no tribunal do júri, quase todas coroadas de êxito. Cara de bom moço, não se pode negar que arrancou suspiros do público feminino, inclusive de uma apresentadora de TV que, entrevistando uma promotora, colega de Cembranelli desde os tempos da faculdade, não resistiu e perguntou se ele sempre foi bonito. A promotora com um sorriso cúmplice respondeu afirmativamente.
Na parte contrária, como vilão da história, surge Roberto Podval,  um pouco acima do peso, olhos claros, sete anos menos que Cembranelli e constituído pelos Nardoni para defender os acusados. Podval tem no seu currículo perto de quinze júris. Antes de Isabella, o caso de maior repercussão em que atuou  teve como réu um famoso médico de São Paulo, que além de matar, também esquartejou o corpo de uma cliente com quem tivera relacionamento amoroso. O médico recebeu a condenação. Mas, graças aos benefícios das nossas leis, após cumprir parte da pena, foi colocado em liberdade.
O criminalista Podval viveu dias de cão por conta do caso Isabella.  Cumprindo o seu papel, o criminalista recebeu mais vaias do que o compositor e cantor Sérgio Ricardo, quando apresentou, no festival de música popular da TV Record, em 1967, sua belíssima canção  Beto, o Bom de Bola,  homenagem ao gênio Mané  Garrincha, que não caiu no gosto popular, principalmente do público ligado à extrema direita que fora ao auditório com a missão de vaiar autores e intérpretes que faziam oposição ao regime militar vigente na época. Sérgio Ricardo era um deles.  E reagiu à vaia quebrando seu violão e o atirando contra plateia. Mas Roberto Podval não dispunha de violão e, ainda que o tivesse, de nada adiantaria para conter a raiva das pessoas à porta do fórum. Todas as vezes em que o advogado entrava ou saía do plenário tinha de ser escoltado por policiais militares, como se fosse ele quem asfixiou, cortou a rede de proteção e jogou Isabella pela janela do apartamento do casal acusado, como um saco de lixo.
A outra personagem da história e  também a mais discreta, o juiz Maurício Fossen, 40 anos, filho de um ex-prefeito de Jundiaí, cidade importante do interior de São Paulo, também conhecida como a terra da uva, só apareceu mesmo, ainda assim não de rosto, para o grande público, quando sua voz anunciou, pelo serviço de alto-falantes do fórum a sentença que condenava o casal. Católico fervoroso, pai exemplar, o juiz Maurício interveio algumas vezes quando acusação e defesa exageraram na troca de farpas no plenário. Mas depois de anunciar o veredito, sua voz foi abafada pelos gritos da multidão na rua somados ao barulho de rojões, dando ao fim do julgamento um clima de final de Copa doMundo, com o Brasil de Dunga campeão, claro.
Por fora, correu a perita criminal Rosangela Monteiro, uma verdadeira expert no assunto. Arrolada como testemunha e responsável pelos laudos técnicos,ela deu uma verdadeira aula durante seu depoimento e foi peça decisiva na condenação dos réus.
Nisso tudo, independente do resultado, justo - até acredito que sim - ou não, tenho algumas dúvidas à parte.
Se Isabella Nardoni e os demais envolvidos fossem negros e moradores da periferia ou apenas pobres, independentes ou não de etnia, será que o caso receberia o mesmo tratamento da imprensa e do povo? Será que em lugar das provas científicas para apontar, sem erro, os culpados a polícia não recorreria a meios menos sofisticados para arrancar de uma vez a confissão dos acusados?
Que fique bem claro: o promotor Cembranelli cumpriu seu papel com extrema dignidade. Evitou valer-se da emoção para pedir a condenação com bases em dados técnicos. Vale lembrar que a função do promotor não é apenas a de acusar. Não havendo provas, ele pode - não é raro - pedir a absolvição do réu. Triste, no entanto, foi o compotamento animalesco da multidão que permaneceu do lado de fora. Não só hostlizaram o advogado de defesa, como os familiares de Alexandre e Ana Jatobá. Cristiane, a irmã de Alexandre, precisou sair a acompanhada da vice-presidente da OAB secção Santana para ir até ao banheiro. Se os pais dos acusados, por infelicidade, colocaram dois monstros no mundo não lhes cabe nenhuma culpa.
Entretanto, da mesma forma como foi esquecido o caso da menina Aracelli Cabrera Crespo, na época com dez anos, drogada, estuprada, assassinada e queimada, na cidade de Vitória, Espírito Santo, bem como o de Claudia Lessin Rodrigues, drogada, violentada, morta e abandonada no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro e também o famoso crime da rua Cuba, em São  Paulo, onde ninguém foi julgado por falta de provas, embora todas as suspeitas recaíssem sobre o filho mais velho do casal assassinado no quarto, é possível que a morte de Isabella, amanhã ou depois, desapareça da memória do povo. Basta acontecer outra tragédia igual ou de maior proporção. Afinal, como diz o título de um livro que li há anos e hoje o nome do autor me foge, o crime é uma questão de marketing.
Desgraçadamente, o crime é uma questão de marketing. Eu gostaria muito que esta crônica fosse ficção. Mas não é.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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