“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

sábado, 24 de julho de 2010

COMUNHÃO

A Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns.


O pão ázimo
dos aflitos
amarga
em minha
boca.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 23 de julho de 2010

CAMÕES DE BOTEQUIM

Se, quando não se esquece, a dor se anunciasse,
A dor de dor se ter na certa nos movesse,
E a falta de doer talvez não mais doesse.
Que passe a se ter dor em tudo e tudo passe!

Viver-se apaziguado assim, e sempre nesse
Bem calmo estar-se e ter-se e dar-se apaziguasse!...
Mas se mais paz eu penso que acabasse
Num desespero mais que aquele que eu tivesse!

Dirão a mim: - Poeta, assim também não pode.
Se tens uma agonia, louva-na numa ode.
E se posto em sossego, num soneto o traga...

E eu direi a quem disser pra mim: - Não fode.
Que o espasmo de um poeta é feito em dor e chaga
E quem diz que não na própria cabeça caga.

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Paulo César Pinheiro,
Rio de Janeiro, Brasil
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segunda-feira, 19 de julho de 2010

ERA PARA SER UM POEMA DE AMOR

arrepia os acordes elos da espinhal-medula
tal abelha sem colmeia. carnívora
morde as pernas em toques de mel
explora jardins por um postigo a sul.

desconfio que tenho uma colmeia no meio do meu jardim.

um anel de azeviche enviado como prenda
lacre envelope branco emprenha
estreita fricha no postigo
sob o sol do teu meio dia
de lanternas maçãs maduras

então no trilho calmo de uma vasta curva
mudas de roupa, respingas dentes de rodízios
um sedar de treva-flor se avizinha
excelente trocar de cuecas para mochos.

desconfio que tenho um boticário no meio da minha cozinha

enxame secular
mordisca o ar
onde se escuta o entoar dos dedos gordos de um velho hipnotismo
marca inúmeros encontros comigo
telefónicas memórias adubam a minha terra já farta.

desconfio que tenho um saco de estrume no meio do meu caminho.

uma brisa beija violentas violetas calmamente
em ramos alaranjados a treva agreste
ao pé do quiosque da esquina
um jornal de folhas secas
sabem a jacintos.

como te sinto.

desconfio que tenho radares, bússolas, quadrantes,
sextantes, muletas e enxadas
que transporto nas bossas de camelo,
atiradas contra o disparate que não mais dá troco a de-
lírios,
pr'além dos espinhos das rosas que não forçam mais areia.

Estás aí? conhecer. Teu
marsupial coração que recolhe o essencial do que conheço.

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Maria João Mesquita,
Porto, Portugal
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HÁ UMA MULHER QUE TALVEZ ME AME

há uma mulher que talvez me ame
escondida numa cidade qualquer do meu país
não sei no entanto se terei tempo de amá-la
ou mesmo conhece-la
não a quero vítima do meu desassossego
se ao menos eu lhe soubesse o nome
ou o endereço - nem que fosse o de um parente próximo
escrevia pedindo-lhe que me esquecesse
gostaria de informá-la que tenho as malas feitas
basta um gole de coragem

há uma mulher que talvez me ame
mas eu não quero que ela siga o meu caminho
meus dias ficaram mais curtos - o que me põe aliviado
cansei das palavras que anos a fio me perseguiram
fartei-me de construir versos
formas/sílabas nada disso me interessa mais
tenho corredores imensos a percorrer
vou terminar no mesmo labirinto - sei disso

há uma mulher que talvez me ame
sem pedir qualquer ternura em troca
sem esperar que eu lhe dê sequer uma jóia barata
ou poemas que já não faço mais
arrependimento também não me pede
manda dizer que eu tranque minhas culpas no armário
e guarde o copo de veneno que tenho sobre o criado-mudo
para o 5º domingo depois de pentecostes

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 18 de julho de 2010

MAIS HAI-KAIS

13.
ao ver-se no espelho do mar
a lua aproveita
para se masturbar
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14.
nosso amor já era
o anel que tu me deste
eu perdi no riviera
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15.
perco-me de vista
no breu deste silêncio teu
de monge trapista
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16.
as bocas comeram
os dentes - agora como
roer as gengivas?
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17.
humilhada a lesma
enfia-se entre as plantas com
nojo de si mesma
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18.
o trem se despede
apita e some levando
as coisas da infância
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19.
no rosto do velho
uma luz: é para a morte
enxergá-lo melhor

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20.
deem-me vinho e paz
fiquem com o resto - porque
o resto tanto faz
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21.
oh lança teu anzol
ao firmamento! tem calma
e fisgarás o sol
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22.
numa volta esbelta
a gaivota faz de conta
que é asa-delta
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23.
bravo meu poeta!
teu poema é belo como
gol de bicicleta
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24.
último cigarro...
noite fria... só desejo
retornar ao barro
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 16 de julho de 2010

HAI-KAIS

1.
a flauta flutua
na pauta noturna traço
a clave de lua
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2.
ganido vazio
o viralata fareja
estrelas no cio
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3.
madrugada de abril
outono - o vento sem sono
lê o jornal do brasil
_________

4.
aqui jaz a ode
é fatal: - o poeta faz
mas também fode
__________

5.
ó rosa nômade
em pétalas maiúsculas
escrevo o teu nome

___________

6.
quimeras partidas
cacos de mim se esparramam
sinto-me náufrago!

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7.
ah cara-metade
como dormias profundo
no quarto-crescente!

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8.
facas de dois gumes
minha amada são estes teus
olhos vagalumes

__________

9.
as três marias são
reticências luminosas
no céu de dezembro

__________

10.
sob o luar verde
da lâmpada as mariposas
exibem seus leques

__________

11.
ritual de inverno
:a lareira que não temos
nos empresta o calor

__________

12.
meu olho-bússola
enferrujado aponta o
norte da loucura

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 14 de julho de 2010

CEBOLA E TOMATE

este meu amigo português é um caso sério. some. e, quando volta, traz uma quitanda inteira. viva mario osorio! aqui vai dele:


por ela meu coração bate
ainda nem sei bem qual
cebola e tomate
cebola e tomate

há quem se perca por chocolate
outros limpam chaminés
- um homem mede-se pelo que traz nos pés -
cebola e tomate
cebola e tomate

e nisto toda a minha metafísica larga
toda a sciência em grande escala;
só ainda não meti na têmpora uma bala
por ver nela sério combate:
É que Napoleão - ele próprio - se fez à carga
por cebola e tomate

cebola e tomate


cebola e tomate

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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segunda-feira, 12 de julho de 2010

SOLILÓQUIO

carrego comigo algumas homenagens póstumas
que preparei com bastante antecedência
nunca se sabe o que pode acontecer amanhã
tenho temporais na gaveta da escrivaninha
atrás dos livros guardo algumas despedidas
olhares de adeus que nunca quis apagar da memória
lágrimas corrosivas que muitas vezes cegaram meus olhos
resistiram ao tempo - parece que as derramei ontem
não sei se é normal mas gosto de inventariar tristezas
o gosto amargo de certos dias ainda posso sentir na boca
da mesma forma que sinto beijos que deixei de dar ou receber
devia pedir mas não peço perdão por me maltratar tanto
quando o silêncio começa a incomodar
dou corda no currupião que tenho há anos
e ele canta e só eu posso ouvi-lo - ninguém mais
agora se for pra sentir medo que me venha de vez o pavor
sou feito de exageros e o pavor assusta mais que o medo
por isso vivo em sobressaltos
por isso acordo sempre com a sirene da ambulância nos ouvidos
ao lado da cama a enfermeira imaginária toma o meu pulso
se lhe faço uma declaração de amor ela pede que eu me acalme
na minha idade as emoções devem ser controladas
um susto qualquer susto pode ser faltal
por isso - eu imploro - não me beije agora
deixe pra depois - talvez

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 11 de julho de 2010

A CANÇÃO DO FIM

há um cheiro de adeus em tua voz
há um gosto de dor em teu olhar
há uma lágrima perdida em tuas mãos
há uma distância sem fim do corpo teu
há um gesto perdido em teu silêncio
há um luto no azul desta manhã
há um ponto final sangrando em mim

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 10 de julho de 2010

QUEM ME PARIU...

Não! Não foram os raios que me pariram
naquela noite de ventos e águas.
Foste tu Mãe! Sozinha no quarto branco
com dores a rasgarem o céu.

De fêmea tornas-te mais mulher
quando tiveste a força da espada
e a certeza do poema,
enquanto os punhais te rasgavam o ventre.

E nasci da tua fortaleza
maior que os urros do vento
mais poderosa que a chuva
a estuprar os vidros.

Não! Não foram os raios que me pariram.
Foste tu Mãe! Com gritos a entrarem no mundo
e um azul do sul a chorar alegrias no teu cabelo.

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Eduarda Mendes,
Lisboa, Portugal
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quinta-feira, 8 de julho de 2010

SONETO DIRETO

o poeta é aquele bicho perdido
de si próprio sobrevive acuado
peca pois já nasceu arrependido
do pecado sem conhecer pecado

por tanto amar acaba desamado
e o pranto que lhe cai vem encardido
porque sempre o apanham desarmado
o que lhe torna a vida sem sentido

ao despencar nos braços da poesia
prática que requer isolamento
vira criança sem discernimento

manda a escanteio toda teoria
e põe-se a mastigar seu excremento
como se fosse a mais fina iguaria

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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PADRE OLAVO, O ASSASSINO DE DEUS

"Humano assim como ele foi,
só podia ser Deus mesmo."

- Leonardo Boff, teólogo e escritor,
definindo Jesus Cristo -


todos os domingos após a missa
padre olavo assassinava deus na sacristia
jesus cristo da cruz fingia que não via
e de certa forma sentia-se vingado como quem diz:
- "Bem feito! Pai desnaturado, por que me abandonastes?!"
depois padre olavo ia pra casa paroquial
e sem nenhum remorso fartava-se de comer
e ia dormir - não sem antes salmodiar:
"A boca do justo anuncia a sabedoria e a sua língua proclama o direito..."

padre olavo foi a alma mais pura que conheci
cria como ninguém na eternidade
de vez em quando traçava alguma beata
era o seu lado humano - sabia que deus perdoava sempre
assim como perdoou santo agostinho
da vida devassa que levava antes da conversão
quando padre olavo morreu
dona expedita jura que viu um anjo ao lado do caixão
dona iracema chorava copiosamente
dona rita também em lágrimas a consolava
seriam elas as mulheres piedosas de jerusalém em nova versão?
é possível... é possível...

todos os domingos após a missa
padre olavo assassinava deus na sacristia
hoje corre boato que anda a fazer milagres por aí
mas não conseguiu curar o reumatismo de dona eulália
que dizem praga de esposa traída
(dona eulália em moça dava-se a homens casados)
quando é assim não tem jeito
e pra piorar quem mandou a pobre envenenar o cachorro do sêo silvestre da padaria
só porque o inocente animal lhe estragava as plantas do jardim?

padre olavo tinha a alma imaculada das crianças

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 7 de julho de 2010

POIS É BEM ASSIM

o poema
à revelia do poeta
entra na festa sem ser convidado
e escandaliza a todos
com palavras de baixo calão

o poema é uma pouca vergonha
diz sempre as coisas
em hora imprópria

:fala mal do governo
em pleno comício
fala mal do padre
no meio da missa
mexe com a mulher do próximo
e perturba o sono da vizinhança

por isso vivem por aí
execrando o poeta
chamando-o de agitador
de louco e parasita

o poema se ri de tudo isso
e escapa ileso da fúria popular
o poeta paga pelo poema
porque ninguém sabe
que o poeta é apenas
instrumento do poema

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 6 de julho de 2010

TRÍPTICO

O retrato de Edith Stein em hábito carmelita
e o de Santa Teresinha do Menino Jesus
aos oito anos, sete antes de se fechar no mosteiro.

No meio deles, o teu
com o olhar dourado a indicar-me o portão de saída do paraíso.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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POEMA COM SABOR A FEL

Ninguém pra me contar uma história.
Só este álcool a encardir o copo.
Saudade de tocar o ouro encaracolado dos teus cabelos.
O homem que fui esbarra na coisa que hoje sou.
Navios de culpas atracam diante dos meus olhos.
O mar que conheci ficava longe do pesadelo.

- Raios me partam! Caralho de vida!
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 5 de julho de 2010

Chiste riste

Cavalgando gata no cio
Veste a plumagem tigresa
Cantigas de menino vadio
Desperta a siamesa tesa
Arrepio no golpe fatal é chiste
Investiga a carne humana riste.

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Diana Balis,
Rio de Janeiro, Brasil
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PEQUENO CONTO QUASE INFANTIL

amavam-se perdidamente
amavam-se loucamente
amavam-se cegamente
amavam-se infinitamente
mas de tanto mente mente
deu-se que o amor caiu doente
e um dia morreu de repente

ela virou uma gata
e vive a miar pelos muros
ele transformado em sapo
coaxa nos brejos escuros

mas voltando ao mente mente
o certo é que ela gata
o certo é que ele sapo
tocaram a bola pra frente
ela nos muros ele nos brejos
nenhum morreu felizmente

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 4 de julho de 2010

BAR

para Maria Luíza e Berg


entre goles & gols
o traficante & o juiz
discutem as bem-aventuranças

a garçonete vira bündchen
nos olhos encachaçados
do publicitário decadente

paixões antigas
fazem o proxeneta tropeçar
em sonhos de porcelana

a musa antiga canta
depois do penúltimo dry-martini
sobe na mesa - despe-se
grita por um certo alfredo
dizendo que se vai matar

pastéis
linguiças & torresmos
envelhecem na estufa

amores que nunca foram - sangram


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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 3 de julho de 2010

NA SEÇÃO DOS DESAPARECIDOS

Para Você

sem a gramática dos teus olhos
meu poema fica ainda mais pobre
vou ao jornal procurar-te na seção
dos desaparecidos hoje tão rara
e o retrato que encontro logo acima
é o da alegria que tive um dia
como envelheceu - meu deus!
quase não a reconheci
não fosse aquela cicatriz
um pouco abaixo do meu olho esquerdo

03-06-10
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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LITANIA PARA SOLANO TRINDADE, O VENTO FORTE DA ÁFRICA (*)

"Trem sujo da Leopoldina
correndo
correndo
parece dizer
tem gente com
fome
tem gente com
fome
tem gente com
fome
Piiiiiiii
(...)
mas o freio
de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuu

(Solano Trindade)


tem gente com fome
solano solano
tem gente com fome
tem negro tem branco
tem branco tem negro
solano solano
morrendo de fome
no chão do brasil
tem gente com fome
no chão desta pátria
patriamada brasil
mas nem sempre solano
mãe tão gentil

tem gente doente
tem gente demente
tem gente que mente
promete pro povo
mas foda-se o povo
que o povo é estorvo
tem gente morrendo
partindo partindo
no bico do corvo

solano solano
passa mês entra ano
e o brasil continua
a ser um engano
tem negro tem branco
tem branco tem negro
só respirando
o ar podre dos dias
solano solano
tem gente indigente
coberta de trapos
dormindo nas ruas
no meio dos ratos
tem gente morrendo
tem gente matando
tem gente mentindo
sem crescer o nariz
passa mês entra ano
sola solano
isto aqui é um país?
- não!
o brasil é um engano
um passarinho me diz

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(*) Solano Trindade (1920-1974) poeta, artista plástico, ator e ativista político, foi dos mais significativos intelectuais negros do nosso tempo. Sempre precupado com as questões da sua gente, lutou, com extrema coragem, contra o preconceito, o que lhe custou diversas prisões. Viveu algum tempo no município do Embu, na Grande São Paulo, hoje Embu das Artes. Morreu pobre, quase esquecido. Sua filha, a atriz Raquel Trindade, que seguiu o mesmo caminho do poeta, mora no mesmo Embu das Artes, onde cuida da Fundação Solano Trindade.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

NECROLÓGIO

piauiense
57
chamava zé

morreu de chagas
na santa casa

em cova rasa
sem uma roaa
foi enterrado
no da formosa

não deixou bens
não deixou filhos
e nem mulher

conforme disse
o declarante
primo distante
também josé

também qualquer

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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SEDUÇÃO

- À moda de
Dalton Trevisan


o desprezo
de joão
engravidou
a angústia
de maria

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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SILOGISMO

Em comum a mesma dor de corte fundo.
Cada qual com sua canga,
Homem e boi nada esperam deste mundo

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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