“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sábado, 31 de outubro de 2009

DE OFÍCIO

I

Agora me porto assim, rindo tanto. Em criança não tinha obrigação qualquer com a felicidade e, ria nada, porque era feliz na minha insuposta liberdade de nada. Hoje sorrio por má-criação, mais das vezes, o que vai bem, muito bem com a liberdade de ser amplamente, não de me ser, como eu suponho, nos detalhes.


II

Filho não tenho. Julgava-me pouco amorosa até para acalantar um poema. Hoje tenho muito amor mais muito medo, como um jasmineiro, sendo o cheiro o extremo do primeiro afeto e no segundo extremo, sua cor. Ainda penso que a flor, quando extremo, fica melhor fora, na natureza ou em vaso, não dentro.


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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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ELEGIA

minha alma
é uma mulher viúva
que não conheceu
marido
por isso vive trancada
no quarto de dormir
a derramar
lágrimas de alfazema
pelos filhos
que não vieram

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

VÁ-SE V.EXA FODER

Por favor, vá-se foder.
Tenho para mim que será um prazer
Que, por certo, não negará
Ir-se V.Exa foder
Desde já.

Nossa impaciência tem limite.
- Igual à do bolchevique -
Que mandou foder o Czar.

(Para depois cair a pique
No trama do bem estar.)

Vá. - É do interesse geral.
Sendo homem, porte-se como tal.
E vá-se V.Exa foder.
Desde já.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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PROSA PARA MÓNICA

Tu sabes, Mónica,
Da minha predilecção pelos poemas curtos.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

POEMA SINTÉTICO

I

1 pombo
cai ferido de morte no
chão
da praça

2 meninos
de suas bicicletas
assistem ao debater
agonizante
das penas

a poucos metros
sentado
num banco de cimento
1 poeta observa


II

o pombo
ferido acaba de
morrer no
chão
da praça

os meninos
em suas bicicletas
se afastam do inútil
amontoado
de penas

num maço de cigarros
vazio
o poeta escreve algumas
palavras

(parece que vai nascer
1 poema)

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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CECÍLIA EM PARTE

Cecília vai recomeçar a partir desse aqui
entretém os cabelos em cima
martela na nuca firme

(as vontades lá)
no breve corrente de água
pausa uma poça em saudade
logo se limpa Cecília
de cima à pressa raiz
ela parte
suspende-se um pouco encara prédios
se lixa
decora dos parapeitos
o curso dum salto quase
rente não vai cair
recomeça
pousa uma palma entre o colo do peito
interrompido e a tinta
vai entre o peito e uma interrompida loucura
o veio não-concluída expira só
expira
azul só Cecília
seis entre sete pecados
menos luxúria
quando Cecília nos deixa aqui
faz a cobiça
dos homens meios que ainda teria

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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ENSAIO SOBRE O AMOR

o amor dura sempre enquanto arde
e mesmo quando as cinzas já estão frias
o amor nem é cedo nem é tarde
o amor nunca tem as mãos vazias

o amor qual relâmpago à solta
atravessa a galope o coração
(e deixa tantas vezes a revolta
na boca e na lava do vulcão)

o amor pode ser o desengano
ou o delta de um rio até ao mar
o amor que se veste sem um pano
e apetece despir e mergulhar

o amor permanece enquanto houver
sede e fome entre o homem e a mulher

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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A FUGITIVA

apresentei a ela alguns poetas
muitos já estavam mortos mas respiravam
nas páginas dos livros que escreveram
mostrei a ela como é fácil
ter uma estrela de estimação por perto
e uma lua sempre à mão
para acendê-la nas noites escuras

dividi com ela o ar
e mais ainda: levei-a até ao cais secreto
onde dormem os navios perdidos
mas não me culpo por nada disso

um dia ela foi sozinha ao cais
(conhecia o caminho e também as marés)
embarcou num desses navios perdidos
e nunca mais deu notícia

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

ELEGIA A NÓS DOIS

não há ossos partidos
não há cinzas
só o frio das palavras expulsas da boca
um solo de adeus que constrange
um olhar escondido em nuvens
chuvas que machucam a memória dos livros
páginas que não lemos

não há ossos partidos
não há cinzas
só restos de alegorias sobras de carnavais
& medos
velhos pierrôs exibindo sorrisos estrangulados
olhares antigos anunciando a cegueira
sei que as malas já estavam prontas
mesmo quando a ideia de partir não havia
urubus rondavam a casa
voos incertos além muito além das asas
coelhos fugiam da cartola
para desespero do mágico

não há ossos partidos
não há cinzas
também não há remorsos presos na gaveta
a escrivaninha de cedro guarda segredos azuis
de canetas que não escrevem mais
as folhas de papel em branco
o silêncio amontoado das coisas que ficaram por dizer

não há ossos partidos
não há cinzas
não há nada
além do retrato feito a carvão
de um capitão bêbado
o cachimbo no canto da boca
o olhar sujo de quem não dorme há anos
querendo dizer que o atlântico é bem maior
do que qualquer adeus

o capitão está certo
do mar nunca se sabe
- navegar é impreciso

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Júlio Saraiva
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

OS TRÊS SONETOS DO HOSPÍCIO

I

(farmácia)

LEXOTANDIEMPAX
LORAXDIAZEPAN
LOTADIAZEPAX
LEXORAXDIEPAN

PANLEXOTAPAX
PAXDIALORAPAN
DIELEXOZEPAN
LORAPANLEXOPAX

LEXOLORAZEPAX
PAXLOTANLEROPAN
DIEMLEXORAPAX

LEXODIAZEPAX
ZELOLEXOTAPAN
LORALEXDIE(M)PAX


II

cachorros magros atravessam esta tarde
os punhais da morte riem-se à minha frente
trago hospitais & igrejas velhas na memória
paguei bem alto o preço da minha loucura

agora é tarde muito tarde para negar
a estrela ferida no cio me convida
uma mulher chora sobre o meu corpo morto
ela tem o rosto todo roxo de pavor

eu só desejo juntar-me aos cães nesta tarde
nesta tarde sinistra onde tudo é lembrança
identifico-me como o meu assassino

cinza meu terno de louça partiu-se ao meio
mas muito me alegra estar no pátio entre os loucos
quero que o passado se foda... nesta tarde!


III

mais morto do que vivo num final de tarde
eu pisava lento o chão dos meus descaminhos
sentindo o calafrio próprio do covarde
ao ver-me assim defunto todo envolvo em linhos

supliquei aos céus: - Não quero anjo que me guarde!
de um velho sábio roubei 7 pergaminhos
prestei honras a dante charles & leopardi
tocado pela força mágica dos vinhos

blasfemei os santos & profanei altares
quando me perceberam fora do juízo
as putas me acolheram em seus lupanares

caí de vez no mundo sem deixar aviso
loucos & vagabundos foram os meus pares
nos quintos dos infernos fiz meu paraíso

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Júlio Saraiva
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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

CASO PERDIDO

às vezes esqueço que sou mulher, vivendo aqui no brasil. entro num bar qualquer. peço uma bebida mais forte. bebo num gole só porque esquenta mais rápido. acendo um cigarro. e viajo. tenho diante de mim o mar de ipanema. cresci olhando o mar de ipanema. bebo mais um. talvez fique bêbada. tenho me embebedado rápido ultimamente. machos de merda, encostados no balcão, não tiram os olhos de mim. acham que vão me comer. visto-me assim: jeans surrados, camisetinha regata, tênis sempre sujos. os putos colam os olhos na minha bunda. carinha, uma mulher não é só uma bunda. uma mulher sonha também e gosta de ser amada. foder é uma consequência. filhos da puta, vão se aliviar nos banheiros podres das pensões onde moram, lá no cu da praça mauá. no fim do mês, quando recebem, despejam tudo nas putas.lágrimas começam a correr dos meus olhos. quando eu tinha 15 anos e apareci com um dragão tatuado nas costas, minha mãe, chorando, me disse, Bárbara, você é um caso perdido. eu me tranquei no meu quarto e chorei um pouco. meses antes de me mandarem pra frança, minha mãe achou metade de um baseado e duas camisinhas dentro da minha mochila. chorando de novo, ela tornou a me dizer, Bárbara, você é um caso perdido. só que dessa vez eu não me tranquei no quarto e nem chorei, certa de que eu era mesmo um caso perdido. dois anos depois, quando eu voltei de paris, grávida de um homem vinte anos mais velho, minha mãe teve um ataque e gritava, Bárbara, você é um caso perdido e ainda por cima virou puta. também não me tranquei no quarto e nem chorei. fiquei até orgulhosa em saber que eu era a vergonha da família. quinze dias mais tarde, comecei a passar mal. quando me disseram que meu filho havia morrido dentro de mim, eu chorei muito, queria morrer com ele, e aí então eu mesma disse pra mim: Bárbara, você é um caso perdido. minha avó disse que era castigo de deus. então eu senti nojo de deus, queria que deus morresse. matei deus pela primeira vez. minha irmã mais nova me emprestou seu colo pra eu chorar. e foi daí que eu descobri que nem tudo estava perdido e gritei, Bárbara, você nunca foi um caso perdido. eu tinha dezenove anos. e o mar imenso de ipanema se oferecendo pra mim, como agora.

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Annabárbara Lins,
Rio de Janeiro, Brasil
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ANTECEDENTE

copo-de-leite preso em castanho
:alto silêncio
desde a garganta
bate
solta suas partes - pluma conhaque
pausa pela folhagem
um arrozal fica bom, fica várzea
nada demais machuca a invenção do risco

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Adriane B.
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BREVE RAIO X DO POETA

para Domingos da Mota e Eduardo Roseira,
numa roda d'amigos - consagro


o poeta não é o samba
o poeta não é o fado
o poeta não é a zoeira
o poeta não é o enfado
o poeta não é a verdade
mentira também não é
o poeta é foda
o poeta é fato
pé de sapato esquecido
resto de dicionário
palavra fora de uso
o poeta não faz seu destino
tanto fala pela boca
como pelos intestinos
o poeta não fará a revolução
o poeta é um filho da puta
o poeta é um serviçal
o poeta é um vagabundo
que rima raimundo com mundo
mas não traz a solução
o poeta é uma sentinela
guardião de almas penadas
o poeta é um porralouca
o poeta não é porra nenhuma
o poeta é um sacripanta
violador de meninas
tocador de violoncelo
numa sexta-feira de chumbo
o poeta é a puta que me pariu
por detrás dos muros da morte
o poeta não é bravo nem forte
e nem um mar de velas pandas
o poeta não é bandeira
pessoa também não é
é só um sujeitinho à toa
que cai no meio da rua
o poeta é um viado
pecado capital da palavra
é um animal sem sorriso
o poeta é o funcionário público
de gravata suja e surrada
dizendo pois-não-obrigado

o poeta subverte a ordem
atenta contra os bons costumes
o poeta cospe no chão
o poeta caga na rússia
e declara amor ao japão
o poeta adivinha a lua
o poeta vai ao comício
o poeta foge do hospício
o poeta morre de enfarto
aos pés da primeira mulher
sem que o jornal noticie
o poeta...
de uma vez por todas
sejamos sinceros
: o poeta ontem ia bem - obrigado
hoje não mais

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Júlio Saraiva
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domingo, 25 de outubro de 2009

ELEGIA DE CORPO PRESENTE

o guarda-chuva
jaz
em suas
varetas

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Júlio Saraiva
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PRETENSO HINO A LORCA

Há que se reconstruir esculturas
Com ferros de tanques de guerra.
Olhar de cara limpa destemida
Para a Luftwaffe,
Enquanto se come a lama da terra.

Há que se saber do amigo
Nos braços vomitando
Coragem, desgraça, sujeira.
Há que se saber da garganta
Chupada
Pelos dedos apodrecidos,
Do fedor das gangrenas,
Dos rádios sem antenas...

Há que se verter brio dos olhos
Para além de poemas-poemas.

Há que se desenterrar
Das sepulturas opressoras
Os quadros tingidos à sangue.
Há que se experimentar,
Ao menos uma vez na vida,
O horror das rachaduras
Dos pés desfraldados,
Até os joelhos no mangue...

Costurar a cabeça no pescoço,
Redesenhar os tantos sorrisos,
Estancar as feridas vazando dor
Há que se ser: também é preciso.

Há que se repintar as bandeiras
Mofadas das pátrias amadas, irmãs
(Irmãs?)
E cravá-las nas mentes
Vadias, sãs, vazias...

Há que se escrever poesia,
Explodir farsas e glórias,
Recontar história.

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Edílson José
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DESPEGO

cacho de menos-memória
uva metálica oscila entre pó
baga de brilho
peso infecundo à terra

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Adriane B.
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LUSCO-FUSCO

Entre a noite e o dia, há um tempo
que parece num beco sem saída,
que não vê, não repara no momento
em que nasce da mesma outra vida;

é um tempo, melhor, quase um destempo,
entre o escuro e a luz da madrugada,
que vira e revira o pensamento
e chega ao limiar do próprio nada;

é um tempo de insónia, cujo peso
se arrasta por vielas, sem perdão
(tal um cão açulado quando preso
e que ferra ao dono a sua mão);

é um tempo de sombras, baço, brusco,
acoitado detrás do lusco-fusco.

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Domingos da Mota,
de Vila Nova de Gaia, Portugal
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http://fogomaduro.blogspot.com/





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sábado, 24 de outubro de 2009

UM VALOR: A VESPA

cruzam na lenta pernas e música:
tempo nublado, vez de limpeza
vespa pra fora dos bolsos, cabelo cacheado, chave, sudário,
letra e se?
e
se (pergunto)
desces o zíper
paga a mentira, ora, obrigada
dobro essa nota de trinta
falsa bem-vinda
poema na mão a zunir

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Adriane B.
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POR FALTA DE ADEUS NÃO SERÁ

aprendi aos trancos
nos trinques
sem meias medidas
nos drinques
às vezes tenho vontade
de desocupar meu lugar
no espaço
deixar pra quem fica
um abraço
& bater minhas asas
mas sabe como é
a conta do gás tá sempre
atrasada
& eu percebo então
que não é como se pensa
tão duro
viver & respirar no
escuro
a gente controla o ar como pode
se sacode & se fode
& recua & reclama
enquanto vai adiando
o último ato do drama
pensar muito pode me fazer
mudar de ideia
me arranje mais um cigarro
o silêncio meu bem
é a minha plateia
não me leve a mal
quero ficar por aqui
no meio-fio parado
esperando fechar
o sinal

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Júlio Saraiva

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CRÔNICA

fêmea luz aquece
a cabeça calva do dia

mulheres & homens
são espectros milenares
brincando de assombrar uns aos outros

as crianças correm
& fazem previsões
do futuro que as espera

os cães ladram como se tentassem
remendar o mundo

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Júlio Saraiva

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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

CAMINHÃO DE MUDANÇA

Deixaram espólio
O choro - peso dos bens - não houve

Descalço por alamedas
Só,
Bêbado,
O olho fiel
e burro corre
cai à privação
sem latido de morte no estômago

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Adriane B.

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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

SERVE-ME

Toda tua terra molha a desordem cobre e para
Provo aos bocados de um gênero ácido
Chove essa insatisfeita por força chinesa, louça, ladra
Certa e lama, a palma sobe
quando anoitecem quintais pelos rumos do arame

Consigo ver, se não ouço a música
A palma agulha
Dois dos sentidos forçam-me a cata de três
se um era teu, nada sabe
no passo foi-se travando à urna virando falha
Ainda a ciranda da véspera queima, muge a memória
de um outro homem
Consigo ver, se não ouço a música
Qualquer música apaga a certeza de um manco
Serve-me aqui de chão serve-me perna ou me alastro
Um vento dissimulado, por tudo,
esparge a fuga

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Adriane B.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

FILOSOFIA POLÍTICA

Estou farto da poesia
cheia de renda de bilros
tricotada bonitinha
a alancear a vidinha
com porosos atavios

ou cedilhas timoratas
amarrotadas sem viço
cabisbaixa de alpargatas
e de olhos sempre de gatas
entre a dor e o derriço.

Ai do lirismo que arrima
e nem é carne nem peixe
pois um poema sem espinha(s)
virgulado picuinhas
é bem melhor que se deixe

de navegar no mar alto
no abismo dos sentidos
de atravessar o asfalto
de voar de ir a salto
pra mundos desconhecidos.

O poema deve ser
"uma pedra no caminho"
com as sílabas a arder
língua de fogo a crescer
e a morder até ao imo.

Mas se a mão o largar
numa toada vazia
desenfreada frenética
há que suster a poética -
e soltar a poesia.

Poetas abaixo a rima
(se ela for a prisão
onde o poema definha).
Estou farto da poesia
"que não é libertação".

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Domingos da Mota

a partir da leitura de dois poemas, respectivamente de
Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade

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POEMA OCIOSO

nossos fantasmas apodreceram
há séculos estamos aqui
na mesma mesa de bar
procurando o desfecho desta balada
- a mais inútil e bela de todas que fizemos

nenhum milagre programado
as notícias do dia seguinte cochilam sobre o balcão
as amadas desaparecem do mapa
não deixam endereço mas mandam dizer
que vão suicidar-se no próximo ano
um bêbado pede licença
ergue o copo - e em nossa homenagem
tira uma porção de estrelas do umbigo

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Júlio Saraiva

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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

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na janela da sala
o Guardião dos Ventos
tem uma música delicada
lembrança da China
país que nunca vi
mas sinto saudade

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Rosangela F.C. Borges

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terça-feira, 13 de outubro de 2009

ONTEM MARIA DA PENHA...

ontem maria da penha
era uma vez este fato
que me turvou toda a vista
e fez sangrar meu olfato
ontem maria da penha
escuta bem o relato
a pontapés e pauladas
mataram uma criança
como se mata a um rato

ontem maria da penha
era uma vez outra história
o motivo exato não sei
ando ruim da memória
ontem maria da penha
ali na rua da glória
com vinte e cinco facadas
joão matou madalena
depois fugiu pra vitória

ontem maria da penha
deu-se outro acontecimento
raimundo ia tranquilo
andando conforme o vento
quando encontrou a polícia
- Encosta aí, elemento!
raimundo tentou explicar
porém não lhe deram tempo
ontem maria da penha
um cabo mais um sargento
mataram raimundo a tiros
por estar sem documento

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Júlio Saraiva

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segunda-feira, 12 de outubro de 2009

SORTIMENTO

deixo e desconheço
ergo-te a mão, na falta de coisa menor
rompida a espátula óssea que salta da pele em joelho
- cravaram-na nova -
a luz não nos deve sorte
faz porque a falta é cínica
gosta de achar saída na meia porta
meia medida, aliás
meia entrada
já era hora trazê-la dentro
secar sua palha onde há calma; zona mestiça
fagulho-te
eu reconheço um circo
no hálito, sempre as pedras em prosa
como traduz-se o sentido perfil pelo ombro do cheiro
a fé ressentida
cai no tapete em acácia
fluindo da pele de ostra escorrega a traqueia
nem sonha como é investir
como ter concha
e boca
morder botões entre poucas toalhas
reter depois ressonar
faz isso um farol à rede
da proa dum barco talvez eu seja intranquilo
mas, ora
ancora o sendeiro do temporal para o sortimento
alguém parte em surdina, alguém tripulado abre-se
minha noviça de lótus presa na saia
eu piscava para testar a realidade
olho na paciência obscena de um charco
vi o meu hábito igual
ao teu, ogiva
se me acostumasse ao menos sem ter resposta
se ao menos água

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Adriane B.

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POEMA SEM ARTE OU QUE SE DANE A FESTA

meu rico relógio de sol
tua branca estrela de sal
a acidez do teu rosto
meu copo de sonrisal

meu caro anel de rubi
tua santíssima auréola
meus porcos lá no terreiro
comendo as tuas pérolas

tua música erudita
meu rap de pé quebrado
tua pura flor de lótus
meu mais sórdido passado

meu são francisco de barro
teu camafeu de marfim
meu beijo no teu escarro
anjos augustos em mim

teu claro monte de vênus
minha camisa de marte
meu corte pede mercúrio
neste poema sem arte

e basta de brincadeira
quem não consente não cala
a fome da porta-bandeira
quer comer o mestre-sala

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Júlio Saraiva

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domingo, 11 de outubro de 2009

ICEBERG TALVEZ

Prego os olhos em ti: são como as aves
a tentar debicar-te lentamente:
ante a sede e a fome dos meus lábios,
com desejos de voar sinto as retinas:

voo então sobre ti, pássaro errante
em busca de alimento na seara,
pra ver-te distraída (se distante),
iceberg talvez, e tão avara.

No voo secante dos meus olhos,
levado pela urgência queimo os lábios
e atravesso-te o corpo, a contra-pêlo:

e perante a nudez fresca dos poros,
sinto a porta aberta a sete chaves
entregue à fusão do quebra-gelo.

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Domingos da Mota

http://fogomaduro.blogspot.com
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RETRATO

sou uma mulher
uma pessoa
uma pessoa mulher
que dói um pouco pelos meses
sangra, a uma vez
e tem sorte
e cicatrizes também aparentes
sou duas, na parte interna
da esquerda coxa
e um corte no mais baixo ventre
muita vez fui de beleza nenhuma
sinto medo quando sorrio com tantos dentes
e tenho alguma lenha de alegria e desejo
alguns segredos meus para a vida
e outros que invento
para assim chamá-los: segredos
e a vida
também forma em mim um mistério
num plano sem revestimento
da minha estrutura de carne
que pulsa
é essa outra
ou, melhor dizendo, outra agora coisa pessoa antes
que ainda eu não conheço
e virá
quando deixar de ser-me

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Adriane B.

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O HERÓI VENCIDO (crônica)

É mais uma guerra que se vai. Acompanho a contagem dos mortos. E, ao me descobrir entre eles, respiro aliviado. Desta vez, percebo que não danificaram tanto o meu corpo. Pelo contrário, tenho até a metade de um sorriso nos lábios, que já começam a exibir sinais de palidez. Ainda trago os olhos abertos. Os braços e as pernas largados num, digamos, desleixo cadavérico. Não fosse este rombo aqui no peito, causa da jaqueta de brim bastante ensanguentada, qualquer um diria que morri de morte natural.
Na outras guerras em que estive, a coisa foi bem diferente. Eu sequer tinha coragem de olhar o meu rosto, tantos foram os danos provocados pela ira adversária. Isso tudo sem contar os pedaços de mim, impiedosamente arrancados, inclusive os olhos, porque a cegueira sempre me pareceu o pior dos castigos. Cego, ainda que sobrevivesse, num ato de desespero, eu mesmo me incumbiria de terminar o serviço, preservando o inimigo do desagradável tiro de misericórdia.
Mas, não. Agora devo admitir que o algoz foi generoso e limpo. Só achei estranho ter deixado, ao lado do meu corpo, uma camisa de força. Não estou bem certo, mas só se deve usar esta peça de imobilizar loucos, quando a presa oferece resistência, reunindo, onde não se sabe, a força de dez homens juntos.
No entanto, comigo nunca foi assim. Não sou de oferecer resistência. Assumo minha condição de presa fácil. Nunca me envergonhei da derrota. Prefiro que tudo acabe logo. Desde muito cedo, aprendi que uma guerra sem vencedores não tem a menor graça porque nem guerra seria. Em criança, assistindo aos xaroposos filmes que exibiam confrontos entre índios e mocinhos brancos, mesmo conhecendo o final, eu torcia pelos índios. Talvez venha daí o meu apreço pelos vencidos. E, assim, quando amanhã ou depois, eles acharem de escrever suas derrotas, queiram até colocar o meu nome na galeria dos seus heróis.

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Júlio Saraiva

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sábado, 10 de outubro de 2009

HERANÇA PARA ESQUECER NA NEBLINA

tão nua a pedra de sal
o cegou

duro desvê-la encostando
um rio em cada tronco

em cada tronco
alguém sentia a mesma memória difusa
das ramas, a ponta da pedra nua

detrás da neblina
- máxima como as penas -
cumpriu essa imagem pregada no tempo sol
está estendida na convergência da luz
em tenso equilíbrio de varais de arame
persiste nas gerações dessa natureza,
a herança da cena
contudo
aguarda por ser cerrada pela neblina
que é esquecimento

o último filho rebenta

dança sobre mim
uma outra pena, isenta

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Adriane B.

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AUTÓPSIA DO POEMA

o poema em seu todo
pode às vezes vir da flor
como pode vir do lodo

pode vir do olho do cu
mas também vem do sacrário
vem do voo do urubu
ou do canto do canário

o poema é brinquedo
é recreio da palavra
o poema vem dos olhos
encovados de quem lavra
o chão a terra que não tem
o poema está a dez
o poema está a cem
bem no meio dos escolhos
ou na noite do meu bem (*)

o poema em qualquer parte
pouco importa onde está
pouco importa de onde vem
pode ser de deus a arte
praga do demo também

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(*) Alusão à canção A Noite do meu Bem, composta
e gravada por Dolores Duran, na década de 1950.

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Júlio Saraiva

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SONETO À NOSSA SENHORA DOS INSONES

ó nossa senhora mãe dos insones
velai por minhas noites em claro
dai-me o sagrado som dos rollings stones
que nessas horas me serve de amparo

livrai-me da farsa do psiquiatra
o diazepan me põe transtornado
minha cabeça vai até sumatra
eu por aqui permaneço acordado

de certas leituras poupai-me também
são bem piores que qualquer remédio
porque na verdade o sono até vem

mas de tão agitado não me faz bem
é sono ruim é sono de tédio
afastai-o de mim para sempre - Amém!

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Júlio Saraiva

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SONETO DE PONTA CABEÇA EM DEFESA DA RAÇA

soberano senhor do próprio vício
o poeta nunca deve se curvar
quando for ofendido em seu ofício

mesmo que na escuridão lhe falte o ar
e caia do mais alto precipício
desmaiado no balcão de qualquer bar

por ser poeta não é um ser qualquer
e não dá por perdido nenhum round
antena da raça e mais do que vier
irmão mais novo do velho ezra pound

só curva a cabeça aos pés de uma mulher
aí sim não importa quando ou onde
o resto que se foda rei ou conde
ao diabo se pena deus não tiver

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Júlio Saraiva

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POR FALTA DE ADEUS NÃO SERÁ

aprendi a viver aos trancos
nos trinques
sem meias medidas
nos drinques
às vezes tenho vontade
de desocupar meu lugar
no espaço
deixar pra quem fica
um abraço
& bater as minhas asas
mas sabe como é
a conta do gás tá sempre
atrasada
& eu percebo então
que não é como se pensa
tão duro
viver & respirar no
escuro
a gente controla o ar como pode
se sacode & se fode
& recua & reclama
enquanto vai adiando
o último ato do drama
pensar muito pode me fazer
mudar de ideia
me arranje mais um cigarro
o silêncio meu bem
é a minha plateia
não me leve a mal
quero ficar por aqui
no meio-fio parado
esperando fechar
o sinal

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Júlio Saraiva

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HOLLYWOODIANO

nesta sala de projeção
sem plateia nenhuma
somos duas almas
hollywoodianas
desajeitadas
belas & desesperadas
em épocas diferentes

temos diante de nós
o espaço vazio da tela
e só conseguimos
nos enxergar em preto
& branco

um piano faz fundo
gostaria de tirar você
pra dançar
enquanto a sessão
não começa
mas mesmo tendo
carlitos aqui comigo
sei que você recusaria
o convite

velhas latas
empoeiradas
jazem
numa pequena mesa
ao lado do projetor
que não funciona mais
vejo essas latas
como ataúdes
empilhados
devem ser destruídas
porque sabem do nosso
passado
todas as películas
também precisam ser apagadas
não podemos deixar
vestígios do que fomos

seus olhos de marilyn
parecem mais tristes
mas eu não me assusto
quando vejo
escorrer dos cantos
da sua boca
uma baba espessa
mistura de vinho
com barbitúricos

logo você dormirá
e eu ficarei acordado
dançando
até que o cansaço
também me vença
aí sim dormirei ao seu lado
sem tocar no seu corpo
como manda o roteiro

quando despertarmos
na manhã seguinte
nesta mesma sala de projeção
vazia
nossas almas hollywoodianas
terão deixado de existir
as cores voltarão aos nossos olhos
e então
tendo o leão da metro por testemunha
firmaremos um pacto de ódio
até o final das nossas vidas

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Júlio Saraiva

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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

PAVANA PARA UM TREM MORTO

o trem
tem
o trem

o trem
é
o trem
sem

o trem
traz
o trem
mas
o trem
sem
o trem
jaz

..............

na noite
fria
o trem
chacoalha
o trem
sacode
o trem
não pode
a lua coalha
o sol acode
o trem
não para
o trem
não pede
o trem
não pode
o trem
se despe
o trem
despede
o trem
dispara
o trem
explode
o trem
nem pisca
o trem
petisca
o trem
não risca
porque
na busca
o trem
se assusta
o trem
desponta
o trem
aponta
o trem
apronta
o trem
apita
o trem
navega
o trem
divaga
num mar
de ferro
o trem
se afoga
o trem
naufraga
num mar
de ferro
num mar
de ossos
ossos
de aço
cadê o trem?
cadê o trem?
cadê o trem?
a noite
espanta
a noite
despista
a voz
sinistra
da alma
penada
do maquinista
atrás
do trem

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Júlio Saraiva

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SE EU MORRER ONTEM...

se eu morrer ontem
e você por acaso acordar
hoje cedo com vontade
de chorar
não chore não
esquece
não vou estar por perto
e nem ninguém vai
reparar
ponha um vestido indiano
ouça um samba do adoniran
ou do paulo vanzolini
não passe de 2 dry martinis
pra coisa não desandar
pense que eu vivi o bastante
pra quem viveu por engano
como um sincero
farsante
poeta não fui dos piores
menos príncipe mais sapo
dei cores aos meus
horrores
se eu morrer ontem
diga
aos interessados
que os convites para o
enterro
estão todos
esgotados

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Júlio Saraiva
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MINHA POESIA

minha poesia não foi educada
na escola de bilac
e nunca será convidada para o chá
dos imortais na academia brasileira de letras

minha poesia anda descalça pelas ruas
do centro velho de são paulo
nenhum tradutor francês perderá seu tempo
debruçado sobre ela
nem será lembrada nos saraus familiares
não a dirão nas escolas
nos dias de festas cívicas depois que a
bandeira nacional onde se lê Ordem e Progresso
for hasteada por uma menina loura

minha poesia sai todos os dias
muito cedo da favela de heliópolis
pega o ônibus lotado
desce pela porta da frente sem pagar a passagem
e vai vender balas no cruzamento da brasil com a rebouças

minha poesia é aquela mulher despudorada
que se oferece a qualquer um sem cerimônia
se bobear assalta e é capaz até de matar
minha poesia se alimenta do lixo das palavras
podres proibidas que não cabem na boca
das pessoas ditas de bem e por isso deve ser execrada
de todas as antologias e condenada a trinta anos de silêncio

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Júlio Saraiva

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