“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sábado, 16 de abril de 2011

EPÍGRAMA FÚNEBRE PARA UM ESCRITURÁRIO

viveu ser-
vil
entre o quin-
quênio
& a licença-
prêmio

agora
duas vezes apo-
sentado
não parte só
leva consigo
por-favor-pois-não
muito obrigado
mais a gravata
&
o paletó

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 15 de abril de 2011

RETRATO

pareço-me comigo cada vez menos


15-04-1
 



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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 14 de abril de 2011

SONETO ATORMENTADO

navegam em mim barcos assustados
não sei de quantos naufrágios vieram
e nem como foram dar onde deram
guiados por ventos atormentados

ao leme seus capitães são fantasmas
tristes pois já não sabem mais assombrar
e têm as órbitas dos olhos pasmas
porque morrem todos de medo do mar

não bebem não fumam nem jogam cartas
suas mulheres morreram nos portos
pra que tanta não fosse a tripulação

os filhos também estão todos mortos
as histórias dantes que eram tão fartas
dormiram pra sempre em cada capitão


14-04-11
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil 
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POEMA QUALQUER PARA UM DIA QUALQUER

descolorir
o tempo & rasgar
as vestes
que nos tornam o corpo
prisioneiro
de antigas vergonhas

descobrir
os atalhos que nos vão
levar
ao limbo onde dormem
as coisas
sem nenhuma importância


13-04-11

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 13 de abril de 2011

PEÇA DE ANTIQUÁRIO

o espelho
diz que o meu rosto
está com prazo
de validade vencido

se o espelho
diz
dito está
e não se discute

guardo
os meus dias azuis
numa caixa
de sapatos como se fos-
sem fotografias tiradas
num velho
estúdio de bairro

acontece
que os dias azuis
estão amarelados

percebo
que tenho vocação
para a velhice

resignado
saio a percorrer
antiquários
para saber quanto dão
por um rosto
em bom estado e quase puro

(o espelho deixo como garantia)


13-04-11
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 11 de abril de 2011

DESPEJO

"É uma ordem superior..."
  - Do samba Despejo na Favela, de Adoniran Barbosa -


fogão  fogareiro
geladeira  colchão
papagaio
gaiola  galinha
cachorro   criança
madeira no chão

foto de casamento
lembrança de aparecida
dia santo   folhinha
prato  panela
penico
piolho   piorra
madeira no chão

um poster do time
uma faca sem crime
a ferrugem nos olhos
uma rosa de pano
um maço de velas
madeira no chão

uma lata  um luto
uma lua de lama
relógio parado
carrinho de mão
madeira no chão

madeira no chão
madeira no chão
madeira no chão
madeira no chão
madeira
no
chão

madeira   madeira
conflito  confronto
comando  comício
polícia   polícia
madeira  madeira
madeira caixote
caixote  caixão

um rosário  uma reza
vinte salve-rainhas
salve-se-quem-puder
um tiro  cem tiros
cinco vidas perdidas
um soluço  um silêncio
cinco corpos no chão

chão

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil 
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quarta-feira, 6 de abril de 2011

BOCAGE DO BIXIGA

saudades antigas moram comigo
não sabes o saco que é senti-las
ferem-me os pés  também o umbigo
não perdoam nem minhas axilas

vais de mojito  vou de pinga pura
fígado revira  cabeça explode
deus-nos-acuda já não nos acode
puta-que-pariu! como que se cura

esta dor-de-corno que me põe tão mal?
nanda que sempre me quebrava o galho
tornou-se budista  foi para o nepal

ana se casou com leonel de tal
cris foi morar na casa do caralho
quem disse que saudade não tem plural?

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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o olho triste do boto
deu um salto rosa-choque

a chuva se desmanchou em sombrinhas
a tarde vestiu seu melhor sorriso de noiva
a se arcoirisou ao leste do meu nariz

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 2 de abril de 2011

ALGUNS POEMAS DE ROSANGELA BORGES (*)

1.

o olhar verde
daquela menina
despertou em mim
o medo do holocausto

2.

um pássaro
voa
acima dos prédios
ele é todo liberdade
eu não
- ando presa no amor

3.

sapatos na vitrine
calçam
meus sonhos

4.

lágrimas de ácido desmancham
aquela boneca da Estrela
destruída dentro de mim

5.

a saudade inunda
o anoitecer da tua bunda

6.

acordou às cinco. às seis rezou no parque. às dez
enfrentou fila no banco. conformada, voltou ao apar-
tamento, conferindo o dinheiro. quieta, meteu-se em
tarefas domésticas. foi aí que se lembrou de Teresa
de Ávila - a doutora da Igreja, atormentada em suas
reflexões místicas: "Deus está presente até nas pa-
nelas..."
nas panela, ela disse consigo enquanto engolia o almoço
de quiabo com carne.
"Deus está presente até nas panelas..."
tardezinha, escutou confissões atormentadas, deu conse-
lhos. profanou. sentiu vontade de rezar, como de manhã.
mas não voltou ao velho Livro de Horas, cheio de culpas
e arrependimentos, que jazia sobre o criado-mudo.
quis rezar, sim. por isso, foi à estante e apanhou Garcia
Márquez, o seu anjo Gabriel. bebeu frases, imagens, sen-
tiu comichões na alma e compreendeu pela primeira vez a
rigidez da vida extramuros.

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Rosangela Borges,
São Paulo, Brasil, é antropóloga, jornalista e es-
critora. Publicou os livros Axé, Madona Achiropi-
ta - A Presença dos Cultos Afrobrasileiros nas Ce-
lebraçõesCatólicas na Igreja Nossa Senhora Achiropi-
ta (disssertação de mestrado em Ciências da Religião);
Quem Quer Teclar Comigo - Adolescendo na Inter-
net (novela infanto-juvenil ) e O Guardião dos Ven-
tos (poemas). Rosangela vive atualmente em Portugal,
fazendo pós-doutorado na Universidade de Coimbra.

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