“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

NO LEBLON

Favela sandálias obscenos acordados
No Leblon
De pé na praia sentados abacaxi
No Leblon
Garota satélite gerúndio abismados
No Leblon
No Leblon

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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sábado, 26 de dezembro de 2009

2 litros e mmm

Vou assobiar dentro desta
garrafa de água
mandar aspirina
adentro 2 litros e meio e
mmm ser feliz
como em my favorite things
nem que me seja
demais pra cabeça.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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de Ofício- VII

I-

Repara/ o gato olha sem fundo/se reparar o gato/ a cabeça nas palmas/ roça também pelas quinas de mesas/ um bicho quente fazendo-se acarinhar/pelo frio das coisas é isso indistinto/repara escrever/ escrever é juntar pelo corpo um colar de carinho das/coisas sem vida.

II-
Escrever pra formar o outro

dizer a cabeça do outro formado

Quando deitar a cabeça

ser irmão



por visitar

-o pai deixou descobrir o mundo.


III-
poesia

alça do furacão princípio acontecendo contínuo girando o olho-originando origirando o cimo dos genuínos gerúndios do estado da terra em ciranda-o indo, indo afundando a mentira-feijão entrando a terra

a terra, Antonio?

Deus quem mentiu comigo


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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

POEMA SECO PARA O DIA DE NATAL

ao camarada marighella, em  memória, e também ao frei betto


no dia 4 de novembro de 1969
em são paulo
na alameda casa branca
o poeta
político e guerrilheiro
carlos marighella foi assassinado
numa tocaia armada
pelo delegado sérgio paranhos fleury e seus comparsas
entre outros vícios
inclusive o da cocaína
fleury tinha fascínio em assassinar pessoas
no dia 4 de novembro de 1969
- dia consagrado a são carlos borromeu -
assassinaram carlos marighella
encheram marighella de tiros
antes torturaram dois frades dominicanos
com quem marighella mantinha contato
eu tinha só treze anos mas sabia quem era carlos marighella
pela boca do meu pai
o delegado fleury frequentava a igreja do sagrado coração
no bairro do bom retiro
onde minha avó me levava
o delegado fleury comungava todos os domingos ao lado da mulher
a amante ficava pra mais tarde
não sei por que estou escrevendo isto hoje
é natal
acho que eu devia escrever coisas mais bonitas
mas devo ter bebido demais
no dia 4 de novembro de 1969
a polícia política brasileira
assassinou carlos marighella
que só queria um brasil melhor
no dia 4 de novembro de 1969
o corínthians de rivelino
jogava no pacaembu
contra o santos de pelé
o serviço de alto-falantes do estádio
anunciou a morte de marighella
como se isto fosse uma glória

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júlio saraiva,
são paulo, brasil, madrugada
de 25-12-09,
lendo o livro Batismo de Sangue,
do frade dominicano e escritor
Frei Betto, onde o episódio
é narrado
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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

POEMA DE NATAL ACHADO NO FUNDO DA GAVETA

fico pensando que devo dizer a mim mesmo meias verdades

mas eu não sei o que não são meias verdades

se cantam uma cantiga de natal lá fora

ponho-me triste

- meu irmão quisera eu saber 

por que não não cantas um samba de breque

um fado

um baião

um rock

um frevo (como o dos carnavais do recife)

uma marcha-rancho

ou qualquer outra merda

que hoje me faça dormir em paz

sem que me venha à cabeça esta data?

esta data?!

mas meu deus que data?!

tenho alguma conta a pagar amanhã?!

devo no mercado?!

algum encontro marcado comigo?!

ora se não tenho nada disso foda-se

quero a liberdade do meu nariz

andando a pé pelas ruas

sem remorso

de ignorar a terrível Noite Feliz

(há canções que são de inteiro mau gosto)

por que esta noite há de ser feliz?

saio pelo bairro onde moro

as luzes das casas estão todas acesas

porque por obrigação quase litúrgica

esta noite exige que todos sejam felizes

: queria só um maço de cigarros

um gole de uísque

quem sabe eu escreva uma prece

(quem sabe? - não garanto e nem estou obrigado)

àquele que nasceu pobre

miserável

numa estrebaria

em belém que não conheço

e por certo nunca vou conhecer

que não deixe que  façam uma noite de mentira

de árvores e lâmpadas falsas

mas que ponha na consciência dos homens

um pouco de boa vontade

e faça o mundo feliz

(merda!)

noite feliz uma ova!


(manhê essa farofa me deu azia)
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júlio, 1976, publicado no Jornal Iniciativa Privada, do movimento Poesia Marginal, postado como o movimento exigia, nos banheiros públicos de são paulo, iniciativa do poeta aristides klafe.


'Pra não dizer que eu não falei de flores' - Geraldo Vandré
http://www.youtube.com/watch?v=g8v5twPc-io

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

2 PEQUENOS POEMAS

ISCA

o peixe morre pelos olhos

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TATUAGEM

o menino
imprimia peixes
na pele verde
das águas
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 20 de dezembro de 2009

pertences

tenho uma ferida

dentro da barriga



é literal

e dói

no natal



tenho também

um vazio

no peito



levo-o comigo

sempre que me deito



tenho uma dor

a lembrar-me da vida



que interessa,amor?

se é dor antiga...



sei navegar

em águas profundas



mas não é meu o mar

nem o barco que afundas
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alexandra cruz mendes,
guimarães, portugal
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ELIS

"Faço parte de uma geração que vinha do sol e, de repente, viu a luz se apagar."
- Elis, numa entrevista -


diante da gravidade
foi preciso que mudasses
em vísceras tantas vezes
o timbre da tua voz
diante da impunidade
que é bicho de muitas faces
foi preciso que alterasses
o calmo correr dos rios
em correnteza veloz
diante da atrocidade
foi preciso que acordasses
com o teu desabafo feroz
um país adormecido
em posição de sentido
sob os olhos frios do algoz
diante da insanidade
de um sol dividido em classes
foi preciso que cantasses
fazendo das garras unhas
para desatar tantos nós
que perdesses o juízo
elis também foi preciso
e assim teu canto preciso
fez-se o canto de todos nós

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júlio saraiva,
são paulo, brasil
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ASSIM É ELIS


um pouco de elis

elis regina carvalho costa, ou só elis, era malcriada ao extremo. não tinha papas na língua e só cantava o que gostava. mas também sabia ser dócil, quase uma criança. pouco mais de um metro e meio de altura, soube erguer sua voz forte contra a ditadura militar implantada no brasil. sua risada, só quem ouviu e viu pode dizer, era gostosa e boa de se ouvir e ver. ria com a alma. mas que não a tirassem do sério. virava onça, apesar do pouco tamanho que tinha, não levava desaforo pra casa. foi a maior intérprete da música popular brasileira. e ao cantar Pra Dizer Adeus, com o arranjo magistral do maestro júlio medaglia, que junta o popular e o erudito numa coisa só, neste espaço postado, pelo poeta carioca José Silveira, mais do que amigo, irmão, porque me socorre também nestas horas difíceis, uma vez sou péssimo em computador, foi a única, com sua interpretação,que dispensa comentários - já haviam gravado esta canção antes -  a perceber que torquato neto estava anunciando o seu suicídio. o  que aconteceria um dia depois de completar 28 anos. com gás de cozinha. elis entendeu, com a inteligência e sensibilidade que tinha, que ali se escrevia a crônica de uma morte literalmente anunciada. que garcia márquez aqui me perdoe. não perderia o título. um beijo, elis.um beijo, torquato. carinho edu.


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j.s.
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são paulo, brasil

sábado, 19 de dezembro de 2009

UMA CERTA ELIS. SÓ CANTOU, NUNCA DISSE ADEUS

http://www.youtube.com/watch?v=9qL9_Z9luUc

ADONIRAN, SE O SENHOR NÃO TÁ ALEMBRADO...

Quero, de coração, agradecer ao meu irmão José Silveira,  o Zé Brasileiro, como eu o chamo, pela homenagem feita ao poeta Adoniran Barbosa,  cujo nome de fato era João Rubinato. Pedreiro, pintor de paredes e ator - e talvez o maior compositor de música popular de São Paulo. Criou uma linguagem própria, coisa que ele não fazia - o escrever errado. Rubinato, como eu o chamava, falava muito bem. Só não comprava cigarros, embora fumasse muito. A beleza que José Silveira, o poeta José Silveira, oferece-nos neste espaço é um encontro memorável dele, Adoniran, com a maior cantora do meu país - ou do mundo-, da qual fui vizinho um tempo, Elis Regina. Rubinato, que nasce por trágica coincidência, no mesmo dia que eu, 6 de agosto, já estava debilitado, pelo excesso do álcool e do cigarro. Morreria logo depois deste vídeo memorável. Mostrou à minha querida Elis, ou a Pimentinha como era chamada, pelo seu temperamento explosivo, o bairro do Bixiga, onde moro hoje. E ela, olhando os prédios que tomaram conta da avenida Paulista, agora o maior centro financeiro de São Paulo, cantou o samba Saudosa Maloca. O resto eles falam. Silveira já colocou com mestria Elis e Adoniran. Não digo mais nada. Ela canta, ele fala.

J.S.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

SONETO DE ADRIANE

vinho nunca foi veneno adriane
veneno tem a luz deste teu olhar
a cegar o meu para que eu me engane
e me torne engano bom de se enganar

vinho sempre foi milagre adriane
mesmo que não seja vinho de altar
teu beijo-vinho faz com que eu profane
meu ser em pecado só de profanar

veneno é tentação que teu corpo tem
mistério gozozo que em mim habita
e me leva longe muito mais que além

veneno sagrado veneno do bem
a matar de vez minh'alma aflita
todas as aflições que do mundo vêm

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Júlio Saraiva,

São Paulo, Brasil
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sábado, 12 de dezembro de 2009

PAULO VANZOLINI, UM HOMEM DE MORAL


Pelo menos uma das frases de seus muitos sambas virou locução popular: "dar a volta por cima." Está incorporada no dicionário do Aurélio. Paulo Emílio Vanzolini, o doutor Paulo ou o Paulinho, como se fez conhecido nas rodas boêmias de São Paulo, além do grande compositor que é, fez-se mundialmente conhecido como cientista - é um dos maiores especialistas em anfíbios e répteis. Sem conhecer uma nota de música, compôs Ronda ("De noite, eu rondo a cidade a te procurar...") - talvez a canção mais cantada na noite paulistana. Boêmio inveterado, é uma das figuras, ao lado de Adoniran Barbosa (pseudônimo de João Rubinato) mais queridas de São Paulo. Além de Ronda, escreveu Volta por Cima, Na Boca da Noite (em parceria com Toquinho), Mente (com melodia de Eduardo Gudin) e Capoeira do Arnaldo, com ele mesmo, além de outras tantas.

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J.S.,
São Paulo, Brasil
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NA BOCA DA NOITE

Cheguei na boca da noite
parti de madrugada
eu não disse que ficava
nem você perguntou nada
na hora que eu indo
dormia tão descansada
respiração tão macia
morena nem parecia
que a fronha estava molhada
vi um rosto na janela
parei na beira da estrada
cheguei na boca da noite
parti de madrugada
gente da nossa estampa
não pede jura nem faz
ama e parte não revela
sua guerra sua paz
quando o galo me chamou
parti sem olhar pra trás
porque morena eu sabia
se olhasse não conseguia
sair dali nunca mais
vi um rosto na janela
parei na beira da estrada
cheguei na boca da noite
parti de madrugada
o vento vai pra onde quer
a água corre pro mar
nuvem alta em mão de vento
é o jeito da água voltar
morena se acaso um dia
tempestade te apanhar
não foge da ventania
da chuva que rodopia
sou eu mesmo a te abraçar
vi um rosto na  janela
parei na beira da estrada
cheguei na boca da noite
saí de  madrugada

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VOLTA POR CIMA

Chorei
não procurei esconder
todos viram
fingiram
pena de mim não precisava
ali onde eu chorei
qualquer um chorava
dar a volta por cima que eu dei
quero ver quem dava
um homem de moral
não fica no chão
nem quer que mulher
lhe venha dar a mão
reconhece a queda
e não desanima
levanta sacode a poeira e dá a volta por cima
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CHORAVA NO MEIO DA RUA

Você diz que eu choro escondido
meu Deus do céu que ingenuidade a sua
se eu tivesse que chorar
chorava no meio da rua

Diga que ainda lhe quero
é verdade
Diga que ainda lhe amo
é também

Mas chorar nem sozinho
e nem na frente de ninguém
Diga que chorei
ninguém vai crer
Todos sabem que eu sou duro
de roer

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Paulo Vanzolini,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

UMA CANÇÃO, NÃO A MESMA ROSA AMARELA, PARA O POETA CARLOS PENA FILHO

eis a rosamarelazul
mui bêbada e caliente
a bordar novos luares
sobre a palavrausente

estranha melancolia
é esta que nos convida
aos mais estranhos festins
pelos "savoys" (*) da vida

colombinas de marfim
doidivanas a galope
lavam as nossas cabeças
com trinta copos de chope

e trinta copos já foram
mais outros trinta virão
a ruminar as memórias
do velho boi serapião(**)

rubra preguiça e domingos
cheirando a missa e coreto
repousam vertiginosos
no colo azul do seoneto

recife - a musa - desperta
e nua entrega-se a um mar
de cores como só carlos
pena filho soube pintar

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(*) alusão feita a um famoso bar
do  Recife, Pernambuco, onde o
poeta frequentava.

(**) Boi Serapião, Memórias do. Famoso poema épico de
Carlos Pena Filho, no qual o boi é o narrador.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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PARA CARLOS PENA FILHO


Carlos Pena Filho (1929-1960). Este foi gênio. Deu cores ao soneto - pintava com palavras. Poeta, advogado e jornalista. Só não teve tempo de ser o maior poeta brasileiro. Um estúpido - como são estúpidos todos os acidentes - acidente de automóvel o matou.

FLAUTISTA


Só fui ser poeta aos 60 anos
quando todos os poemas
já estavam escritos
e poesia não havia mais.

Tocador de flauta
sopro árias inúteis
dos que não sabem tocar.

Toco também sinos nas igrejas
mas só em dias póstumos
ou em casamentos desfeitos.

Aos 60 anos as imagens são outras
e também desnecessárias
como a flauta
como a música.

Só fui ser poeta aos 60 anos
quando eu já não sabia viver
como se fosse preciso viver
para ser poeta.

Então descobri o mar
mas era tarde

Sempre me disseram
que poesia é sacerdócio
por isso andei sempre
com uma extrema-unção no bolso.

Só fui ser poeta
quando não tinha mais tempo
e me faltava o ar
quando
todos meus barcos de papel
já tinham afundado.

Só fui ser poeta
quando todas as rimas
rimaram palavras e poemas
mulheres e plantas
aves e ausências.

Antes eu somente
andava perdido
entre poemas e lugares
preces e acenos.

Antes não existiam os sons
que agora ouço
entre o esquecimento
e o que nunca foi.

No entanto toco minha flauta
para preencher as tardes
e trazer as aves
para mais perto de mim.

Descubro agora que os oceanos
são claros como as manhãs
e só agora compreendo
a cor do Outono.

Antes eu não me tinha
como me tenho agora
a bater à porta de uma casa
de janelas azuis.

Não sei se terei tempo
de tecer ainda os mesmos
poemas já escritos
de procurar a mesma poesia
que se perdeu nos chapéus
reminiscentes das pessoas.

Sou agora uma pessoa antiga
talvez tenha os olhos de meu pai
aqueles que se fecharam
na brancura das paredes.

Agora tenho comigo uma bolsa
de pequenas pedras
e  algumas chuvas do final das tardes.

Os animais me seguem nesta planíce
como se eu fosse um pastor sem volta
a percorrer montanhas nas fotografias.

É possível ver melhor agora
o fim das coisas
que também antes terminavam
mas eu não via.

Há um  navio na minha porta
oceano que se abre ao mundo
numa viagem em torno de mim.

Só fui ser poeta aos 60 anos.

Sei agora o que significa a poesia
por isso tenho no rosto o espanto
e na boca
as palavras que não sei dizer.
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Álvaro Alves de Faria,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

ORAÇÃO, ao circo

aquela tristeza única
como a lona
encardida dos circos
de antigamente

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Julio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

miragem do rosto ou três chances de eco

entrei e me viram
como soubessem algum segredo
sobre o amor da família um cochicho
e aquela

II
aquela mulher
aquela mulher tem meu rosto (e três chances aqui)
tem minha boca o meu chapéu
é alguém com meu sangue guardado no feltro
minhas pequenas distâncias entre vogais
como ser Eu em ão
como ser Eu na seguinte sentença
as coisas da nossa casa
morrem já pelas sementes
o seu sentido é romã
e quem se arvora no nome envelhece com ele
primeiro

III
das pernas partimos
de onde partimos, vaqueiro?
eu quero ser sua amiga como uma fratura
antes os ossos em linha
estalam sem sobressaltos até
aos confins de anfíbios
flutuam e oscilam nem
podem prender-se à verdade costela da frase
: perdemos o temporão, Marta
(marta me abraça, se agita)
dirijo-me à Marta que haja em Maria, que tenha perdido
diria que sinto se fosse Antonia
se fosse minha a rua e ladrilhos a veritas-mágoa
será para ali logo sinto que abraço
(garçom, mais três chances na mesa em latim e fechamos)
que sei eu agora? esse invento
nada
que sei eu ainda? não tudo, belezas do ouvido jovem
florete de água afastando o ar das jangadas
o inseto turquesa pousado no cílio

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

CONSERTAR A TERRA

Dizia-me o  meu avô:

- O assobio do amolador chama a chuva.

A profissão do amolador caiu de velha no desuso da
modernidade,
O meu avô caiu no desuso da terra.

Que assobio chamará o meu avô?

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Bruno Sousa Villar,
Portugal
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Adornos

Rezo nas noites:
-minha tristeza
– que é franciscana - fazei-me um cético

Mas(sss)
vem a manhã
que é mulher e instrumento de coxas
Tantos adornos na paz.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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Queimadura

A mão mergulhada no copo aquece
a água de queimaduras. A mão se cozinha de fora para den(...)

Você não me odeia
Eu não te amo
Tenho meus trinta e poucos
(mais dois e são quase quarenta)
fico mais um acidente doméstico
e vamos
tratar dos extremos

Há coisas que posso dizer dançando.

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Adriane B.
São Paulo, Brasil
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A PENÚLTIMA CEIA

esta pálida luz do teu silêncio
habita os corredores da memória
vai cortando o tempo ao meio e vence o
velho era-uma-vez de toda história

e tudo o que já fomos agora dói
feridas que não cicatrizam nunca
a maldição a caminhar adunca
esta traça que aos bocados nos corrói

e assim nos morrem todos os assuntos
tal como nós também morremos juntos
a ambição do nada é o que nos resta

nada nada nada mil vezes nada
provamos as sobras do que foi festa
até que cesse enfim a caminhada

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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CANÇÃO (Eu conheci uma mulher)

eu conheci uma mulher, ela trabalhava de noite até tarde
tudo estava bem
tudo tão perfeito
eu conheci uma mulher, ela trabalhava de noite até tarde

eu conheci uma mulher, ela nunca olhava atrás
tudo estava bem
tudo tão perfeito
eu conheci uma mulher, ela trabalhava de noite até tarde

um dia ela partiu, foi-se com o destino
tudo ficou bem
tudo tão perfeito
eu conheci uma mulher, eu conheci uma mulher

ela trabalhava de noite até tarde.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

ANA CRISTINA CESAR, ENTRE A TERNURA E O DESESPERO



"O que mais queima: a pedra de gelo ou o ferro em brasa? Vulcão de neve. Ela não foi - ela fica - como uma fera."
               - Armando Freitas Filho -



Ela era linda, culta, de inteligência fora do comum. Ana Cristina Cesar ou Ana C foi uma das vozes mais significativas do que se chamou Poesia Marginal dos Anos 70. Às vezes frágil como uma porcelana, às vezes parecia feita de ferro. Sabia ser terna e também irônica, conforme seus escritos revelam. Nasceu no Rio de Janeiro, a 2 de junho de 1952, numa família de classe média. Aos 4 anos já ditava poemas para a mãe. Precoce, aos 7 começou a ter seus primeiros poemas publicados, no Suplemento Literário do jornal Tribuna da Imprensa. Cursou a faculdade de Letras, lecionou inglês e português, viajou várias vezes para o exterior. Traduziu Katherine Mansfield, Emily Dickinson e Sylvia Plath. Também exerceu o jornalismo, colaborando principalmente em veículos da chamada imprensa alternativa da época. Participou da antologia 26 Poetas Hoje (1976), organizada pela professora Heloisa Buarque de Hollanda, ao lado de poetas como Cacaso, Capinan, Torquato Neto e Isabel Câmara. Ousada, sua poesia, sem linguagem rebuscada, porém de extrema elegância, percorreu os caminhos do lirismo, da sensualidade e da irreverência, mas sempre com luz própria. Ana C está, sem dúvida, entre os dez mais importantes poetas brasileiros contemporâneos. No entanto, no dia 29 de outubro de 1983, ela se cansou. Tinha só 31 anos, mas se cansou. Antes, falou ao telefone com seu amigo e confidente, o também poeta Armando Freitas Filho. Disse que estava bem, parecia feliz. Pouco depois, dirigiu-se à janela do apartamento de seus pais, no 7º andar de um prédio, no Rio de Janeiro, e resolveu voar. E voou, para não voltar nunca mais.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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RÁPIDA ANTOLOGIA DE ANA C


QUANDO CHEGAR

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso

julho 67
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CIÚMES

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente.

abril 68

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A CARTILHA DA CURA

As mulheres e as crianças são as primeiras que
                             desistem de afundar navios.

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SAMBA-CANÇÃO

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi de graça,
pelo telefone - taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia bruxa, meia fera,
risinho modernista
arranhando na garganta
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

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PROTUBERÂNCIA

Este sorriso que muitos chamam de boca
É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
embora o mundo me condene
Devo falar em nariz  (as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me empresta seu peito na madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou,
                      armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que
se fecham sobre si mesmas
No ano do 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
                          rainha de quem, quê, não importa
                          E se eu morrer antes disso
                          Não verei a lua mais de perto
                          Talvez me irrite pisar no impisável
                          e a morte deve ser muito mais gostosa
recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Uma palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.

setembro 68

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Os poemas de Ana Cristina Cesar  foram tirados dos livros A teus pés, Brasiliense, São Paulo, 2ª  edição, 1983 e Inéditos e Dispersos poesia/prosa, (obra póstuma), organizada por Armando Freitas Filho, Brasiliense, São Paulo, 1985                                      

para Ana Cristina Cesar

lima de ferro no gosto/ o sentido daquilo aproxima/ visto na luva a forma chamada mão/ me toco a decência antes/ sugo da pia a má continência de mar/ o mar o cano distinto vênus/ pereço os sentidos que dei comigo/ as pontas extremas da pedra fria carregam um equilíbrio de estrela que as une/ que as força viga/ agora me lembro a forma de pedra/ dobro o voo daquilo que a terra rejeita/ pêndulo
agora                              
inspiro.
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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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PARA NÃO ESQUECER ANA CRISTINA

"e na deck-chair
ainda te escuto folhear os últimos poemas
com metade de um sorriso"
- Ana Cristina Cesar -

não consigo deixar
de afundar navios
e alugar cômodos
em casas mal-assombradas

espero pelo último round
vejo tuas fotos no livro
redescubro a hora no velho cuco
que deixou de funcionar quando eu era menino

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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A CASA DA MENINA SENHORA

A casa está lá, como eu imaginei tantas vezes depois de passar os olhos em alguns cartões postais: caiada, branca, muitas janelas, um porão escavado, vários cômodos, um pomar, uma porta de entrada, outras de saída. Ao lado, tranquilamente corre o Rio Vermelho. Um casarão velho? Sim, mais parecido com uma nau adormecida no colo das águas. E a moradora? Partiu há algum tempo, no dia 10 de abril de 1985. Sua presença, entretanto, ainda permanece nos objetos espalhados nos vários cantos.
Falo da poeta Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas e de sua casa velha da Ponte, no cerrado goiano. Nesta mesma casa fiquei sabendo, conversando com alguns moradores, que a poeta recebeu o nome de Ana em homenagem à santa padroeira da cidade. O ano era 1889. O Brasil? Um país em travessia: a mão-de-obra escrava negra era substituída pelo trabalho livre e a Monarquia dava lugar à República.
Mesmo com as mudanças da época às mulheres restava, quase sempre, aceitar o destino traçado pela família e mais tarde pelo futuro marido, normalmente escolhido pelo pai da moça. Mas Ana queria mais. Personalidade inquieta, apresentou os primeiros sinais de rebeldia aos 15 anos quando decidiu, para preservar seus escritos da censura familiar, adotar o pseudônimo de Cora. Um segundo momento marcante de rebeldia aconteceu aos 20 anos, quando movida pela paixão e o desejo de liberdade, fugiu com Cantídio, homem 22 anos mais velho, separado e com filhos. Daí para frente  não parou mais: alistou-se como enfermeira na Revolução de 32, escreveu um manifesto para a formação de um partido feminino e aos 70 anos, com o aval de Carlos Drummond de Andrade, publicou seu primeiro livro de poemas.
Se a casa velha da Ponte, apesar da beleza arquitetônica, não despertou em mim grandes surpresas, porque pouca diferença tinha daquela imagem que eu trazia dos postais, a história de Cora Coralina, narrada pelos seus conterrâneos, me surpreendeu bastante e acordou em mim fortes lembranças de meus antepassados.
Durante a minha infância ouvi muitas vezes minha tia Teresinha, por quem eu tenho um grande afeto,  contar nos finais das tardes, entre um gole de café e um pedaço de bolo de cenoura coberto com chocolate, a história de Maria do Carmo, irmã caçula da minha avó Aurora, de rosto quase idêntico ao da poeta de "Estórias da Casa Velha da Ponte", que em meados do século passado, também como Cora Coralina, no auge dos seus 20 anos, não temeu quebrar as amarras e escolher o próprio destino.
Contou-me tia Teresinha - que afirma que apesar dos cinco anos de idade recorda-se de todos os detalhes daquele dia  - que Maria do Carmo a levou, como fazia religiosamente, para tomar sol e brincar com outras crianças na praça da cidade. Maria do Carmo tinha um grande carinho pela sobrinha, afinal a menina era a única criança da casa, com todos os mimos merecidos.
Naquela manhã, como de costume, a menina Teresinha soltou-se rapidamente da mão da tia e correu ao encontro das crianças que brincavam na praça. Nada parecia ter o poder de romper com aquela rotina de infinitas brincadeiras ao sol. Mas de repente o barulho do motor de um carro - coisa rara naqueles tempos - abafou a algazarra infantil e modificou aquela manhã ensolarada. Como na imagem congelada de um filme parece que todos os personagens perderam o movimento na cena, exceto Maria do Carmo que rapidamente correu em direção ao jeep e desapareceu. Sentada e aos berros no meio da praça, Teresinha denunciava a fuga e minutos depois a vizinhança da pequena cidade comentava a ousadia da jovem Maria do Carmo, moça inteligente, prendada, de boa família, que por conta de uma paixão clandestina havia contrariado as ordens familiares.
O tio de Maria do Carmo, homem conceituado na cidade, logo sugeriu denunciar o rapto ao delegado de polícia, mas foi aconselhado a abandonar a ideia para evitar um escândalo maior. Nessas situações, diziam os conselheiros de plantão, era melhor ceder ao capricho da paixão dos jovens e rapidamente providenciar o casório.
Nascida em uma família católica tradicional, Maria do Carmo, alguns meses depois do casamento, engravidou. Desta primeira gravidez nasceu Vitória Amélia. Em seguida, uma nova gravidez e mais uma menina com o nome de Carmem Célia. Em um periodo curto, uma terceira gravidez. E aí um menino: Celso.
Maria do Carmo contrariou com afinco às ordens familiares e casou-se com o homem que amava, mas seu corpo não resistiu à imposição machista que condenava as mulheres a gerar um filho após outro. E digna de uma personagem de folhetim na quarta gravidez sua história chega ao fim.
Não conheci Cora Coralina nem Maria do Carmo - elas também não se conheceram. Mas a semelhança de alguns fatos vivenciados por essas duas mulheres colocam imensas asas em mim e num voo transgressor procuro encontrar o sentido da minha própria história.

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Rosangela F.C. Borges,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

EU TIVE UM NOME UMA VEZ

Tiveste um nome uma vez
tiveste um nome
com ramos ferozes na entrada
O campo cedeu sob o peito inchado
do céu no seu meio
Gorda a feira do céu expondo
metais sobre a terra pontas de
antenas bicos calando a prata
Lá trabalhei
tive um nome em batalha
Manteve
De açúcares-pardo seu cheiro
velhos fechados nos móveis
hóstia doce trazida no bolso- a vigília
as patas da vaca pegada com deus
úmida ao atropelo da morte nos homens
De urina grávida: afeto de fora
feito nas traições estrangeiras
Narinas da rua onde a vila não mora
chamavas apenas parte
Tudo por água quintal acácia
por mim por mim

Eu tive um nome uma vez
arejado, quarando um país de mulher
na luz inteira da
boca aberta em cães de passagem.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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INSÓNIA

Vira a noite do avesso: a insónia
à desfilada cavalga
as sombras a pulsar perdidas

despenteia as estrelas desgrenha
desmesura o peso
e o pavor das horas desmedidas

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

TRECHO DO MEU DIÁRIO

não penses nunca bia que sou tudo isso
sou uma mulher comum cheia de fragilidades
mas não esperes que eu tire a máscara do meu rosto
assim como tiro a roupa
não gosto que me vejam chorando
deixa-me ser assim como sou
com as minhas fraquezas
não me cobres nada
nem me peças mais do que te posso dar
por mais que eu me fique a remoer
jamais vou cair a teus pés
que eu seja tua em nossos momentos
de resto sou do mundo
sou imunda
vagabunda
sou esterco e flor
não me peças bia que te ame
não me peças nada
se te chamo meu amor é mentira
não sou dona das minhas verdades
nem mesmo sei o que é a verdade
só sei das coisas que doem em mim
tua língua às vezes é uma faca afiada
a me cortar o ventre
mas mesmo assim eu gosto
talvez a dor me dê prazer
ofereço a mim mesma este desprezo
e morro mais a cada dia

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Annabárbara,
Rio de Janeiro, Brasil
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