“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

o corpo só

a gente presta tão pouco quando querido

em ponto isso larga inadmissível
em ponto perco/ encontro o corpo só
cansaço físico da avenida

minha sintaxe complexa é o homem no asfalto
é porque digo
:escrever me lembra um homem no asfalto
e um homem não deve estar só,
segundo deus.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

ISTO E MAIS AQUILO

Quem gosta de poesia "visceral",
ou seja, porca, preguiçosa, lerda,
que vá ao fundo e seja literal,
pedindo ao poeta, em vez  de poemas, merda.

- Antonio Cícero -

podia até dizer filho da puta
quando leio um poema visceral
à vulva delicada chamar gruta
na mira de a sondar e coisa e tal

podia pôr a boca no trombone
e juntar mil palavras insolentes
e soltar um terrível ciclone
com ganas de partir quebrar os dentes

podia clamar isto e mais aquilo
e com o fel na língua derretido
perder-me na facúndia desse estilo
e ferir muita gente sem sentido

podia mas não vale mesmo a pena
defecar por aí um tal poema

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

PARA CERTA MOÇA

procuro por você no centro
agitado desta minha são paulo de concreto
sei que é impossível encontrá-la aqui
tolo no entanto insisto
esbarro nos transeuntes que passam apressados
tenho olhos de louco
converso sozinho e sigo a minha busca
na praça perto da biblioteca mário de andrade
encontro enfim sua sombra descansando num banco
sua sombra me oferece um sorriso
eu aceito o convite para sentar-me ao lado dela
damos algumas risadas
muitas risadas - rimos de tudo como se tivessemos 15 anos
posso ler o mar do rio de janeiro escrito nos olhos da sua sombra
a baía da guanabara
a lagoa rodrigo de freitas
o botafogo que já foi de garrincha
a tijuca
e são cristóvão - por que não? -
pena que sombra não sabe beijar
logo a tarde vai baixar
olhe meu bem o que me apavora são meus voos altos
não sei saltar de paraquedas
mais tarde talvez no escuro do meu quarto
eu pense em você e me masturbe
afinal temos agora apenas 15 anos

22-02-10

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

NO CU DA MADRUGADA, COM AUGUSTO DOS ANJOS, ME IMPORTUNANDO DO ALÉM

"Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro (...)"

- Augusto dos Anjos, Versos Íntimos -

a cada cigarro que fumo morro
um pouquinho mais assim como quem
assobia baixo a Noite do meu bem(*)
mas Dolores não me vem dar socorro

morro um pouco mais a cada cigarro
como se o cigarro me fizesse bem
e o beijo fosse bem mais que o escarro
sai de mim augusto fica aí no além

meu sentimento é pra lá de bizarro
 meu fogo acabou e já não tenho quem
por  pena acenda este meu cigarro

se vim do barro volto para o barro
deixa-me aqui só com o meu cigarro
saí de mim augusto fica aí no além

(meu anjo da guarda nunca diz amém
foi que este estrambote eu só fiz de sarro)

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Tirado da canção A Noite do meu Bem, da cantora e compositora brasileira
Dolores Duran, gravada na década de 1950.

Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

CONTAGEM PROGRESSIVA

o amor está por
: um canário doente
um relógio enguiçado
um acidente de corpos
uma bala perdida

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 14 de fevereiro de 2010

JASMIM!?


conheci uma catraia,
seu nome era jasmim.
vestia sempre de saia,
nunca vira outra assim.

seu olhar, lindo de ver.
seu corpo, ai, nem falar.
logo me fizeram tremer,
em ânsia louca d’amar.

meus olhos fitaram os dela,
foi o amor que estalou.
nunca vira coisa tão bela.
tremi, quando o olho me piscou.

daí a declarar-me,
foi coisa de um instante.
com o amor, a queimar-me,
abordei-a de rompante.

disse-lhe num grito incontido:
- amo-te! sou louco por ti !
ela segredou-me ao ouvido:
- oh, filho, eu sou um travesti!!!



                                                            Foto de : eduardo roseira


 eduardo roseira
VNGaia - Portugal

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

QUASE UMA ODE

para ana cristina cesar,  hilda hilst e orides fontela, pela alta poesia que fizeram - nem sempre entendida. a torquato neto também, poeta brilhante e que foi tão cedo.


tenho sonhos tristes
e me pego sempre no purgatório
(alma penada saio fugindo de mim mesmo)
se me esbarro na rua peço licença
tenho um cigarro entre os dedos
e um olhar de culpa
meus óculos enjoaram dos meus olhos
e nem me cumprimentam mais
o hálito de álcool quase doentio
devo morrer de cirrose hepática amanhã - diz-me um médico meu amigo
respiro a chuva de ontem e me rio
resisto ainda e escrevo
só sei fazer isto: escrever
como se escrevendo às três da madrugada
eu pudesse mudar o mundo
tenho um litro de uísque ao lado já pela metade
dois maços de cigarros que me vão matar mais depressa
e um milhão de adultérios que me levarão de volta
à casa da amada que já não existe
se pelo menos eu conseguisse cortar os pulsos
mas me falta coragem nesta hora
quando a rua é deserta
queria sentir pena de mim
mas aos 53 anos isto é quase impossível
dou um trago na bebida
acendo um outro cigarro
e tento escrever um poema
quem sabe o cansaço me vença e eu durma mais tarde

12-02-2010
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A POESIA MARGINAL BRASILEIRA

Perguntam-me, os mais novos me pedem, que defina o que se convencionou chamar de poesia marginal brasileira.Não sei se vou ter a elegância de Glauco Mattoso, um estudioso da matéria.  E um grande poeta, acima de tudo.
Tenho, sim, obrigação moral que as novas gerações entendam, porque já estamos na casa dos sessenta anos - e no bico do corvo -. com uma literatura quase encerrada pelo que a vida é, faz e não perdoa.
 Poesia marginal não foi um movimento literário - nem sabíamos o que era isto. Fazíamos só poesia. Mas o marginal, entendam no sentido sociológico, o que vive à margem. Era assim.  Alguns quase todos ou todas eram ligados a partidos de esquerda. Mas tínhamos todos uma influência grande dos modernistas, Oswald de Andrade( com seu cínico  e genial"Amor/Humor.), mas que nunca me fascinou - embora todos ou todas o adorassem.. Houve, sim, grande influência dos tropicalistas - Caetano, Gil e TomZé, fora os poetas (brilhantes) Capinam e Torquato. O tropicalismo foi um movimento. Organizado ou não, mas foi. E que se inclua nisso, no movimento, digo, os maestros e regentes Rogério Duprat, Júlio Medaglia e Damiano Cozella, pelos seus arranjos irreverentes para a época, nos quais misturavam o clássico, que era da formação deles - todos saídos das melhores sinfônicas -, com o chamado popular.
 Eu, entre poetas, já preferia Dante Milano, poeta de um livro só, e Bandeira, afora Drummond e Vinícius.. Mas isso é uma outra história. E o que preferi ou deixei não vem ao caso. Nem importa.
É Glauco Mattoso em seu livro, O Que é Poesia Marginal, quem define  o que éramos: uma geração de loucos e loucas, quase todos bêbados e drogados, não havia outra saída. Não tínhamos como publicar nossos trabalhos. Na maioria das vezes eram feitos mesmo a mão ou mimeógrafados. Vendíamos a preço de pinga, para que nos pagassem o sanduíche, isto quando não acabávamos presos, o que era comum.Nossa poesia era comercializada em portas de universidades, teatros ou botequins - quando a polícia deixava. O dinheiro mal dava pro ônibus. Voltei pra casa muitas vezes a pé. E minha mãe dizia que eu não tinha jeito.
Desta geração destaco a maior voz da poesia brasileira - Ana Cristina Cesar, uma menina linda que se matou aos 31 anos. Seguem a ela, porque  Ana foi imbatível, Paulo Leminski, com sua genialidade de conhecer línguas estranhas - como o sânscrito, por exemplo -, Cacaso(Antônio Carlos de Brito), Isabel Câmara (a Bel) e Torquato Neto - este último eu não pude conhecer, suicidou-se com gás aos 28 anos.
Acho que já disse muito.

j.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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LÁ VAI ARTUR...

lá vai artur,
lá vai
com um rolo de serpentinas
na mão.
lá vai artur,
lá vai
vestindo a fantasia,
que é o desengano
por um dia,
da máscara que usa
ao longo do ano.

lá vai artur,
lá vai
com um molho de confetis
junto ao coração.
lá vai artur,
lá vai
a caminho do salão,
levando por vontade,
a de num dia só,
tirar desforra
de 364 de ilusão.

lá vai artur,
lá vai.
cerveja e mais cerveja,
afogando as acumuladas mágoas
da luta por um lugar ao Sol,
entre intrigas
e muita, muita inveja.

lá vai artur,
lá vai
dançando ao som
das notas musicais
da “banda realidade”.
dança.
requebra.
balança.
samba após samba
entre risos,
confetis,
serpentinas
e imensa alegria.

.................................................
...até que...
raios!
a “realidade” tocou
o seu último samba.
já é dia.
que castigo.
caramba!
.................................................

lá vai artur,
lá vai.
fantasia trocada.
agora trajando
fato,
gravata
e sapato a condizer,
p’ra ninguém dizer mal
nos dias e dias
deste imenso carnaval.

lá vai artur,
lá vai........


eduardo roseira - VNGaia - Portugal

domingo, 7 de fevereiro de 2010

baldeares

I

chove desde dezembro meu colo
empurra a mão com afazeres da água
anuncia que vai andar
quando as meninas arrancam as peles de entre dedos
mulheres secam a palha do bicho
meu colo parte
um bicho acocora, ele agoura janeiro

II

chove desde dezembro
meu colo sabe afazeres da água
ela transborda um jeito que tenho de fio
cabelos me cobrem a cara a luz
cai

III

meu colo se parte quando tua mão
mergulha na água transborda um
fio e o filho sofre
com o assobio da tua luz
querendo voltar abrir
a borda do nosso círculo
desde dezembro não volte

IV

posso morrer à pedra solar
na minha parte de gente posso
morder a pedra que dá na fome
tua mão travar as gengivas do filho que
arranca fio a fio cabelos meus
já não me cobre o gosto
mais não chove

V

seca a minha cabeça na palha
desejo água os pelos vêm
fecham a boca e rio
partir depende


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Adriane B.
São Paulo, Brasil
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caminho dos sais particulares


: relaxar às voltas com uma lágrima

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Adriane B.
São Paulo, Brasil
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O SENÃO

Afia a faca do vento
corta os pulsos ao senão
com o nó do pensamento
desaperta o coração

pois o senão que sufoca
e se adensa como breu
e ameaça com a forca
e põe as garras ao léu

pede a faca no pescoço
pede o fio da navalha
desde a pele até ao osso
(ou o diabo que o valha):

mesmo sendo dura a vida
vale mais do que perdida

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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sábado, 6 de fevereiro de 2010

CAMÕES DE BOTEQUIM

Se, quando não se esquece, a dor se anunciasse,
A  dor de dor se ter na certa nos movesse,
E a falta de doer talvez não mais doesse
Que passe a ser dor em tudo e tudo passe!

Viver-se apaziaguado assim, e sempre nesse
Bem calmo estar-se e ter-se e dar-se apaziguasse!...
Mas se mais paz tivesse eu penso que acabasse
Num desespero mais que aquele que eu tivesse!

Dirão a mim: - Poeta, assim também não pode.
Se tens uma agonia, louva-na numa ode.
E se posto em sossego, num sossego o traga...

E eu direi a quem disser pra mim: - Não fode.
Que o espasmo de um poeta é feito em de dor e chaga
E quem diz que não na própria cabeça caga.

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Paulo César Pinheiro,
Rio de Janeiro, Brasil
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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

BÊBADO NÃO SOU




vós…olhais para mim
dizeis-me bêbado.

não. não e não.
foi a vida que me pôs assim
mas olhai bem
pois bêbado eu não sou.
só bebo para lavar a mágoa
que vai em mim.

não. não te rias.
pois és tu.
sim, tu. Oh! Mundo.
o culpado de eu estar assim.
não bêbado eu não sou.

lavo-me por dentro
para limpar a tristeza
que vai em mim.
sim lavo-me.
com vinho cerveja enfim.
ou já viram alguém
fazer lavagens ao estômago
com sabão?
não. eu também não.
porque lavo eu o estômago assim?
é para limpar o fingimento
a que o mundo me obriga a mim.
sim fingimento.

algumas vezes sou engenheiro
outras poeta doutor
e até já fui cangalheiro.
mas seja lá o que for
bêbado não.
bêbado eu não sou.
não, não te rias de mim.
pois um dia pensa bem
e talvez acordes assim.

não bêbado eu não sou.


eduardo roseira - Gaia - Portugal
In: “a colheita íntima”

(Foto, "Azulejos", de eduardo roseira)

POEMA PARA AS CRIANCINHAS DE SEGUNDA CLASSE

O primeiro verso é um qualquer
O segundo desenvolve o tema
O terceiro segura o poema
O quarto é como convier

O quinto retoma o passo
O sexto quer-se bonito
O sétimo sempre o faço
Depois do oitavo ter escrito
(E o nono ter pensado)
No décimo o terceiro repito
E o poema fica acabado

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Mário Osorio,
Lisboa, Portugal
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INFÂNCIA

I
era um tempo feliz em gotham city
aquele tempo feliz
em gothan city

II
quando desabava temporal
minha vó
com sua pureza de oratório
corria a cobrir os espelhos
todos da casa
ninguém podia pegar  em tesoura nem faca
(são jerônimo! santa bárbara! - minha vó chamava)
e pra eu não me assustar
dizia que os trovões eram flatos
de nosso senhor
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

CANÇÃO PARA MARIA EDUARDA

Para uma menina, Maria Eduarda, claro, de olhos tristes,
que escreve como gente grande.

em mim tenho moça só alguns dias fúteis
 a pobre ingenuidade dos meus versos
as minhas dores que de tão inúteis
não são do mundo mas de universos

perdi a conta das vezes que chorei
causa dos outros nunca pelas minhas
eduarda mas eu também já fui rei
 tive coroa e duas mil rainhas

hoje te entrego esta canção tão pobre
não sou mais do que um poeta de rua
que enxerga ouro onde tudo é cobre

tocando em frente a vida continua
eu só queria te cobrir de rosas
mas posso dar-te só versos e prosas

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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HOLLYWOODIANO



na sala de projeção
sem plateia
somos duas almas
hollywoodianas
desajeitadas
belas e desesperadas
vivendo épocas diferentes

temos diante de nós
o espaço vazio da tela
e só nos enxergamos
em preto e branco

 um piano faz fundo
gostaria de tirar você
pra dançar
enquanto a sessão
não começa
mas mesmo tendo
carlitos aqui comigo
sei que você recusaria
ao meu convite

latas velhas empoeiradas
jazem numa pequena mesa
ao lado do projetor
que não funciona mais
vejo essas latas
como ataúdes empilhados
precisamos destruí-las
porque elas um dia nos destruiram
também essas películas
devem ser apagadas
não podemos deixar
vestígios do que fomos

seus olhos de marilyn
me parecem mais tristes
mas agora eu não me assusto
 quando percebo escorrer
dos cantos da sua boca
uma baba espessa
mistura de vinho com barbitúricos

logo você dormirá
e eu ficarei acordado
dançando
até que o cansaço
também me vença
ai sim dormirei ao seu lado
sem tocar no seu corpo
como exige o roteiro

quando despertarmos
na manhã seguinte
nesta mesma sala de projeção
vazia
 nossas almas hollywodianas
terão deixado de existir
 e as cores voltarão aos nossos olhos
e então
tendo o leão da metro por testemunha
firmaremos um pacto de ódio
até ao final das nossas vidas

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

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9.

um cavalo de vento
balança sobre as árvores.

colhe estações vadias
e sombras encobertas

numa ausência do corpo
desfeito de raízes.
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José Félix,
Luanda, Angola,
in Teoria do Esquecimento
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TRAMAS

Rosas, sinais ocultos, signos
Inscritos códigos em outras pedras
Preciosas tramas, caminhos
Provas inúteis de estar aqui
Ante um perfume, ante uma nuvem
Quando estamos ante uma cobra
Ou ante os gestos das substâncias
Como esses signos que o vento põe em rotação
Quase quando estamos ao fim inalcançável das rosas
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José Carlos Capinan,
Salvador, Bahia, Brasil
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Trazei-me o que vos resta linda Inês
 o vosso xale nos ombros perdido
trazei o que vós clama no peito
como se a viver o que não viveis.

Trazei em vós a morte que  consome
esse destino de seguir sozinha
o vosso amor que se desfaz na face
e sublime mais cresce em vossa fome.

Trazei esse silêncio em vós contido
como se a colher no fim da vida
o que nunca vos fora prometido.

Esquecei no mais duro esquecimento
o que de vos lembrar já não se pode
o pressentir vosso pressentimento.
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Álvaro Alves de Faria,
São Paulo, Brasil,
in Sete Anos de Pastor
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