“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sábado, 27 de março de 2010

A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO

"Lembra-te de minha miséria e de minha angústia:
absinto e veneno!
Eu me lembro, sempre me lembro,
transido dentro de mim."

Lamentações de Jeremias, 3ª  Lamentação - 19,20

ALEF

depois da chuva
veio outra chuva
e mais outra chuva
e nada restou da colheita

BET

talvez seja eu aquele homem
sufocado
perdido no meio dos escombros
talvez seja eu
aquele homem
no meio dos escombros

GUIMEL

não sei ao certo se  foi salvação
ou castigo
agora é tarde para saber
sei apenas que os dias se tornaram longos
e o pesadelo é fato

DALET

não consigo mais enxergar estrelas
tudo é treva
só tenho viva a lembrança dos meus mortos
os vivos acho que nunca existiram
todas as pessoas que comigo conviveram
eram frutos da minha imaginação doente

HE

de mim guardo poucas lembranças
a mais importante vem do tempo
em que eu transformava licores em fel
bebia o fel com gosto
e depois punha-me a esperar a morte

VAU

passava parte dos meus dias trancado
na sala repleta de livros
aprendendo a arte de adivinhar o futuro
e os meus laços com a morte
ficavam cada vez mais estreitos

ZAIN

raras foram as noites em que a morte
não me vinha visitar
chegava pudica
sua fisionomia era limpa
sem nenhum sinal de horror no rosto
a morte me beijava a boca
acariciava os meus cabelos
sussurrava em meus ouvidos
e me deixava adormecer no seu colo
quando amanhecia
a música suave
como a respiração de uma criança
me trazia de volta à vida

HET

também não posso esquecer
da ternura que os cães
principalmente os enxotados e doentes
me ofereciam
quando o ar era escasso
e o desespero incontrolável
os cães se aproximavam de mim
lambiam as minhas feridas
e nada pediam em troca
senão um afago

TET

muitas vezes experimentei a sensação
de um pássaro
encolhido nas penas
sem o menor desejo de voar
pássaro covarde
que renunciou à liberdade das alturas
pelo limitado espaço da gaiola
em troca da ração diária de alpiste

IOD

agora nem céu nem gaiola
nem alpiste
meus cães estão mortos
e a morte porque não transformo mais licores em fel
me despreza

CAF

sinto o fio da navalha no pescoço
a baba grossa a me cair
pelos cantos da boca
minha arma é o grito
mas as pedras não o escutam
e os insetos me ignoram

LAMED

ó deus dai-me um pouco de temor
para que eu vos possa temer
arrancai-me do peito a descrença
apontai-me os abismos mais profundos
dai-me a fúria dos desesperados
a indiferença dos loucos
e o riso débil dos felizes
para que eu torne a acreditar


MEM

faltam-me as lágrimas
gostaria de poder chorar como as mães
que perderam seus filhos nas guerras

NUN

queria muito ser como os rios
que desde a nascente sabem o caminho do mar
queria ser como os ventos
que desconhecem o cansaço

SAMEC

ó minha cidade
desejei tanto vos declarar o amor
que nunca senti
prostitutazinha de concreto
perdoai-me
nunca serei o vosso poeta
nunca emprestarei os meus versos
para escrever a vossa história

PE

tive as malas prontas
mas as partidas ficavam para o dia seguinte
quando tudo parecia consumado
uma mulher surgia à minha frente
caía de joelhos aos meus pés
a implorar para que eu não fosse

AIN

sempre fiquei não querendo
perdi a conta de quantas três mil vezes
neguei a mim mesmo
escondido atrás do muro da minha vergonha

SADE

quando me negaram  pão roí as unhas
quando me negaram água bebi restos
de tempestades antigas acumuladas na memória
dos meus piores dias
deram-me por morto em combates
que nunca estive
e gravaram o meu epitáfio
nos banheiros imundos
dos antros mais ordinários

COF

hoje sei que só as putas
me amaram de verdade
por alguns dinheiros
elas desnudavam seus ombros
cheios de cicatrizes
para que eu depositasse minhas lágrimas
sobre eles

RES

uma sensação de alívio porém me envolve
nesta hora em que o final se aproxima
vou levar na mochila aquelas poucas frases
que não consegui dizer
nas ocasiões de festas ou funerais
vou levá-las comigo
e depois trancá-las a sete chaves
no cofre de pedra do meu silêncio

SIN

ainda não decidi mas devo levar também
uma camisa florida
adquirida num bazar de caridade
nunca a usei
mas a estampa servirá de recordação
da primavera que esperei em vão
não posso esquecer
das minhas surradas sandálias
de couro cru
caso amanhã eu mude de ideia
elas me farão lembrar
o caminho de volta

TAU

toda despedida é inútil
amanhã num porta-retrato
meu rosto estará mais velho
e minha barba mais branca
mas se nada disso
por acaso acontecer
meus amigos eu suplico
matem-me para sempre

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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