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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A CASA DA MENINA SENHORA

A casa está lá, como eu imaginei tantas vezes depois de passar os olhos em alguns cartões postais: caiada, branca, muitas janelas, um porão escavado, vários cômodos, um pomar, uma porta de entrada, outras de saída. Ao lado, tranquilamente corre o Rio Vermelho. Um casarão velho? Sim, mais parecido com uma nau adormecida no colo das águas. E a moradora? Partiu há algum tempo, no dia 10 de abril de 1985. Sua presença, entretanto, ainda permanece nos objetos espalhados nos vários cantos.
Falo da poeta Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas e de sua casa velha da Ponte, no cerrado goiano. Nesta mesma casa fiquei sabendo, conversando com alguns moradores, que a poeta recebeu o nome de Ana em homenagem à santa padroeira da cidade. O ano era 1889. O Brasil? Um país em travessia: a mão-de-obra escrava negra era substituída pelo trabalho livre e a Monarquia dava lugar à República.
Mesmo com as mudanças da época às mulheres restava, quase sempre, aceitar o destino traçado pela família e mais tarde pelo futuro marido, normalmente escolhido pelo pai da moça. Mas Ana queria mais. Personalidade inquieta, apresentou os primeiros sinais de rebeldia aos 15 anos quando decidiu, para preservar seus escritos da censura familiar, adotar o pseudônimo de Cora. Um segundo momento marcante de rebeldia aconteceu aos 20 anos, quando movida pela paixão e o desejo de liberdade, fugiu com Cantídio, homem 22 anos mais velho, separado e com filhos. Daí para frente  não parou mais: alistou-se como enfermeira na Revolução de 32, escreveu um manifesto para a formação de um partido feminino e aos 70 anos, com o aval de Carlos Drummond de Andrade, publicou seu primeiro livro de poemas.
Se a casa velha da Ponte, apesar da beleza arquitetônica, não despertou em mim grandes surpresas, porque pouca diferença tinha daquela imagem que eu trazia dos postais, a história de Cora Coralina, narrada pelos seus conterrâneos, me surpreendeu bastante e acordou em mim fortes lembranças de meus antepassados.
Durante a minha infância ouvi muitas vezes minha tia Teresinha, por quem eu tenho um grande afeto,  contar nos finais das tardes, entre um gole de café e um pedaço de bolo de cenoura coberto com chocolate, a história de Maria do Carmo, irmã caçula da minha avó Aurora, de rosto quase idêntico ao da poeta de "Estórias da Casa Velha da Ponte", que em meados do século passado, também como Cora Coralina, no auge dos seus 20 anos, não temeu quebrar as amarras e escolher o próprio destino.
Contou-me tia Teresinha - que afirma que apesar dos cinco anos de idade recorda-se de todos os detalhes daquele dia  - que Maria do Carmo a levou, como fazia religiosamente, para tomar sol e brincar com outras crianças na praça da cidade. Maria do Carmo tinha um grande carinho pela sobrinha, afinal a menina era a única criança da casa, com todos os mimos merecidos.
Naquela manhã, como de costume, a menina Teresinha soltou-se rapidamente da mão da tia e correu ao encontro das crianças que brincavam na praça. Nada parecia ter o poder de romper com aquela rotina de infinitas brincadeiras ao sol. Mas de repente o barulho do motor de um carro - coisa rara naqueles tempos - abafou a algazarra infantil e modificou aquela manhã ensolarada. Como na imagem congelada de um filme parece que todos os personagens perderam o movimento na cena, exceto Maria do Carmo que rapidamente correu em direção ao jeep e desapareceu. Sentada e aos berros no meio da praça, Teresinha denunciava a fuga e minutos depois a vizinhança da pequena cidade comentava a ousadia da jovem Maria do Carmo, moça inteligente, prendada, de boa família, que por conta de uma paixão clandestina havia contrariado as ordens familiares.
O tio de Maria do Carmo, homem conceituado na cidade, logo sugeriu denunciar o rapto ao delegado de polícia, mas foi aconselhado a abandonar a ideia para evitar um escândalo maior. Nessas situações, diziam os conselheiros de plantão, era melhor ceder ao capricho da paixão dos jovens e rapidamente providenciar o casório.
Nascida em uma família católica tradicional, Maria do Carmo, alguns meses depois do casamento, engravidou. Desta primeira gravidez nasceu Vitória Amélia. Em seguida, uma nova gravidez e mais uma menina com o nome de Carmem Célia. Em um periodo curto, uma terceira gravidez. E aí um menino: Celso.
Maria do Carmo contrariou com afinco às ordens familiares e casou-se com o homem que amava, mas seu corpo não resistiu à imposição machista que condenava as mulheres a gerar um filho após outro. E digna de uma personagem de folhetim na quarta gravidez sua história chega ao fim.
Não conheci Cora Coralina nem Maria do Carmo - elas também não se conheceram. Mas a semelhança de alguns fatos vivenciados por essas duas mulheres colocam imensas asas em mim e num voo transgressor procuro encontrar o sentido da minha própria história.

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Rosangela F.C. Borges,
São Paulo, Brasil
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