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sexta-feira, 11 de junho de 2010

ÀS VÉSPERAS DOS SEUS OITENTA ANOS, O MAIOR POETA BRASILEIRO LEVA O PRÊMIO CAMÕES

Não há o que contestar. O maranhense Ferreira Gullar, pseudônimo literário de José Ribamar Ferreira, é o maior poeta brasileiro em atividade. Ele vai completar 80 anos no dia 10 de setembro. Mas, como suas últimas aparições públicas revelam, continua com a mesma disposição do menino que um dia saiu da sua São Luís com destino ao Rio de Janeiro, para receber um prêmio de poesia, e acabou ficando. No dia 31 de maio, Ferreira Gullar foi anunciado ganhador da vigésima segunda edição do Prêmio Camões, a mais importante láurea concedida a escritores de língua portuguesa.
Cabelos brancos cobrindo parte do rosto magro, Gullar ainda lembra o Periquito, como era chamado pelos amigos de infância e adolescência, na histórica São Luís, capital do Maranhão, estado que ao lado do vizinho Piauí, é apontado o mais pobre do Brasil.
Ferreira Gullar é mais um José Ribamar no Maranhão. E explica-se. O nome grassou por aquelas bandas por conta de uma imagem de São José encontrada por pescadores boiando nas águas do mar. Os padres, na época, tinham a artimanha de atirar nos rios e também no mar imagens de santos. Logo que eram achadas, a notícia se espalhava. O povo via o fato como uma graça divina, e os religiosos aproveitavam-se para erguer igrejas no local, exemplo semelhante ao que ocorreu na cidade de Aparecida do Norte, em São Paulo. Como a imagem de São José foi encontrada sobre as águas salgadas, vem daí o nome Ribamar - riba, em cima - ribamar em cima do mar. De lá até hoje, mais da metade dos meninos nascidos no Maranhão passaram a se chamar José Ribamar, entre eles o nosso Periquito e também o ex-presidente e atual senador José Sarney.
- O senhor é o poeta Ferreira Gullar?, perguntou uma moça ao vê-lo caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro.
- Às vezes, ele respondeu.
Em entrevista concedida recentemente à TV Cultura de São Paulo, Gullar explicou:
- Não sou poeta vinte e quatro horas por dia. Sou José Ribamar. Jornalista de profissão.
Jornalista, crítico de artes plásticas, ensaísta e dramaturgo, além de poeta - claro -, Ferreira Gullar é uma das maiores inteligências brasileiras. Inteligência, porém, que o governo da ditadura militar, implantada no Brasil em 1964, como manda a lógica em se tratando de militares, não reconheceu.
Gullar foi preso. Amargou exílio no Chile, Rússia e Argentina. Para sobreviver, dava aulas particulares de português. Quando regressou ao Brasil, ainda foi e submetido a longo interrogatório policial. Coisas dda ditadura.
Seu primeiro livro, Um Pouco Acima do Chão, é de 1949. Mas a fama mesmo viria na década de 50, com A Luta Corporal, que, para espanto do poeta, numa livraria do Rio foi colocado na parte de livros esportivos por total ignorância do funcionário da casa.
De espírito inquieto, sempre disposto a renovar, Gullar fez diversos experimentos com a poesia. Passou pelo concretismo, criou o movimento neoconcreto e escreveu também poesia de cordel. Mas foi no exílio em Buenos Aires, depois de dois anos sem escrever uma única linha, o que o levou a um pesado estado de depressão, que ele concebeu a sua obra mais importante - Poema Sujo, no qual narra toda a sua trajetória por São Luís. Reconstrói, como quem pinta uma tela com palavras, toda a cidade histórica onde nasceu e passou a infância e a adolescência.
Gullar achava que ia morrer. Poema Sujo, considerado um dos maiores poemas épicos da língua portuguesa, é quase uma espécie de testamento do poeta. Coube a outro poeta, Vinícius de Moraes, o privilégio de conhecer em primeira audição os versos do amigo exilado.
Numa fita cassete, com Gullar declamando com sua voz forte e o carregado sotaque nordestino, Vinícius trouxe o Poema Sujo, escrito entre maio e outubro de 1975, para o Brasil. Foi uma audição seleta. Ênio Silveira, da editora Civilização Brasileira, logo tratou de publicá-lo, mesmo sabendo que poderia ter problemas com o governo da época.
Ferreira Gullar é o nono brasileiro a receber o Prêmio Camões, instituído em 1988, em comum acordo entre os governos brasileiro e português. O primeiro a conquistá-lo foi o português Miguel Torga.


TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

- FERREIRA GULLAR, in Na Vertigem do Dia -


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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
______________________

2 comentários:

  1. Caro Júlio,


    Muito bom! Salve Gullar!

    Abração,
    Adriano Nunes.

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  2. Gullar merece todas as homenagens - e ainda um pouco mais.

    abraço,

    j.

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