“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

ORAÇÃO EM FORMA DE POEMA AO POETA FERREIRA GULLAR, NOS SEUS 80 ANOS

I

a vida tem cheiro?
o poema tem cheiro?
qual a cor da palavra bomba?
"Enquanto o mar bate azul em Ipanema..."
(ou no Leblon)
os tambores de São Luís acordam o dia
acordam o menino Periquito
que se descobre na quitanda do pai
e mija na Fonte do Bispo
mas se redescobre entre caixotes
a ler Y Juca Pyrama sem saber
que muitos anos depois viria o Poema Sujo
-tão Maranhão como nunca- parido palavra por palavra
no exílio em Buenos Aires
o menino Periquito
exilado em Buenos Aires
o filho de Dona Alzira
nascido José Ribamar Ferreira na rua dos Prazeres
o menino Periquito no Centro Cultural Gonçalves Dias
na Igreja de São Pantaleão
ou na Baía de São Marcos onde El-Rey Dom Sebastião
foi habitar saindo vez quando na noite
para visitar moças donzelas no escuro de suas alcovas
à falta da pílula as moças emprenhavam de El-Rey

II

vi o poeta Ferreira Gullar de perto (ou quase) duas vezes
faz mais de trinta anos
a primeira foi no campus da USP
durante um ciclo de palestras que a universidade promovia
o poeta não mudou nada
(só eu mudei)
ele é o mesmo que hoje vejo em aparições na tv
nas fotos dos jornais e revistas
os cabelos lisos e brancos
divididos ao meio
caindo pelo rosto (os ossos do rosto salientes)
gullar quando da primeira vez que o vi
havia voltado do exílio
Santiago do Chile
Moscou
Buenos Aires
- tantas pátrias para um homem que só sabia ser brasileiro -
vínhamos de uma geração esmagada
pisada pelos coturnos da ditadura
nossos diretórios e centros acadêmicos fechados
quando ele disse o Poema Sujo eu chorei
como podia podia uma voz tão forte sair daquele corpo franzino?
queríamos que ele autorizasse a publicação do poema
DENTRO DA NOITE VELOZ
em homenagem a Che Guevara
no nosso jornal literário rodado num mimeógrafo
da faculdade à revelia do reitor
foi a poeta Vera Torres - moça de rosto bonito e versos curtos -
quem se dirigiu a Gullar
o pedido de autorização era só um pretexto
para nos aproximarmos dele
tornei a vê-lo mais tarde no Rio de Janeiro
durante o carnaval
no desfile de escola de samba
ele tinha um copo de plástico na mão
a bateria da Unidos de Padre Miguel era forte
para que eu me aproximasse dele
uma tarde tive a impressão de cruzar com ele
na agitada rua 7 de Abril
mas acho que foi só impressão
miragem

III

a poesia meu caro
não conhece o tempo
a poesia principalmente não tem tempo
para pensar no tempo
a poesia constrói e conduz a seu modo o seu tempo
a poesia dispensa abraços e cumprimentos
mas a poesia também permite
que eu me sente a seu lado Poeta
na mesa de um bar qualquer
pode ser em São Luís
diante de uma travessa de arroz de cuxá
pode ser em Paris
Bucareste ou Belém do Pará
na Rocinha na Mangueira
em Vigário Geral ou Copa
em Botafogo ou Madureira
sem sair do meu quarto
atento a seus livros
como se estivesse a ler em seus olhos
poemas que eu queria ter feito
a palavra Liberdade que eu queria ter dito
como se eu estivesse preso com você
na mesma cela imunda
na Vila Militar
naqueles dias escuros
onde penso suas palavras
escritas em maços de cigarro
onde imagino um barulho infernal
saindo de bocas quietas
se assim foi ou não foi Poeta
fica sendo
hoje a noite tudo pode
hoje a noite nada contesta
que esta noite faça barulho
que a noite faça sua festa

___________________
Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
__________________

4 comentários:

  1. Parabéns pelo poema. Parabéns ao poeta maior.

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  2. uma das coisas mais bonitas entre todas as que têm peso, sua poesia vibra o que é real. você domina a pureza. você e Gullar - matrizes e "o mundo se explica / só por existir".

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  3. brandão,

    era o mínimo que eu podia tentar dizer deste grande poeta.

    afeto,

    j.

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  4. drica,
    nós sabemos dele.

    um beijo,
    o outro periquito - nem sombra deste grande.

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