“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

ELEGIA QUASE DIDÁTICA PARA UM PAÍS QUE UM DIA PERDEU SEU RUMO

minha rua era um rio sem água
que terminava na esquina
onde o bonde fazia ponto final
meu avô português discutia
com o fiscal espanhol
quando discussão acirrava
os dois faziam pausa
davam uma espécie de trégua
e concordavam que salazar e franco
eram lixo do mesmo saco
putas da mesma zona
(morte aos dois): o brasil
era um país abençoado - diziam
e tudo acabava bem
em risadas e copos de macieira
meu avô português e o fiscal espanhol
até que chegou 1964
e os militares desabençoaram o brasil
filhos da puta!
foram juntar-se a salazar e franco
no mesmo saco de lixo

só eu menino sabia que minha rua era um rio
sem água
sem barcos
sem peixes
sem a mãe d'água também
e portanto não ia dar no mar
a menos que a minha imaginação quisesse
aí sim o mar aparecia salgado e os poucos carros
que trafegavam viravam navios imensos
e iam juntar-se aos outros que eu inventava
eu não sabia de salazar
eu não sabia de franco
eu não sabia de putas
eu não sabia o que estava acontecendo
no meu país em 1964
e embarcava num desses navios
atravessava o atlântico e aportava noutras terras
porque nos meus 8 anos era permitido sonhar

quando os bondes deixaram de circular
o fiscal espanhol nunca mais apareceu
meu avô português morreu atropelado
perto da minha rua que era dele também
mas o rio tinha sumido
e os carros não viravam mais navios
nem a minha imaginação me levava
ao outro lado do atlântico
o brasil desabençoado tornou-se um país doente
e a propaganda do governo
espalhada por todos os cantos dizia:
"AME-O OU DEIXE-O"
"AME-O OU DEIXE-O"
"AME-O OU DEIXE-O"

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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