“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL

"Hoje à noite é jovem; da morte, apenas 
Nascemos,  imensamente."

- Vinícius de Moraes, Poema de Natal -

Meus natais nunca foram felizes. Sempre tive tudo, é verdade. Mas jamais me apeteceram as festas natalinas.
Como já disse numa crônica anterior, nessas ocasiões eu me trancava no quarto. E era um deus-nos-acuda pra me tirarem de lá. Não queria comer, não queria presentes, não queria nada. Queria ficar a sós comigo mesmo. E eu tinha apenas seis anos.
Aos sete, por causa desse meu jeito, minha mãe levou-me ao psicanalista. Mas eu não falava com ele. Na mesa do consultório, eu improvisava um campo de futebol de botão e o cura-loucos ficava apenas me olhando, enquanto eu imaginava um estádio lotado e os craques do meu tempo fazendo mágica com a bola nos pés.
Quando fiz dezoito anos, respirei aliviado. Não tinha mais necessidade de ficar em casa, olhando a mesa farta de comida. É verdade que bem antes da maioridade eu não tinha mais o hábito de ficar em casa, já demonstrando um certo gosto pelo álcool. Foram dois anos interno entre os beneditinos. Quando saí, descontei tudo. Sempre fui movido a exageros. Até no exercício de amar. Hoje entendo porque sofro tanto.
Jornalista, escolheram-me para fazer uma reportagem de natal numa favela. Vibrei com a pauta.
Antes da meia-noite, lá fui eu, acompanhado do repórter-fotográfico Tarcísio Mota, meu fiel companheiro de andanças por este mundo-de meu-deus.
Foi na favela Ordem e Progresso, em Vila Prudente. A comunidade nos esperava. Havia uma mesa enorme, coberta de papel crepom, ao ar livre, o que proporcionaria aos cães do pedaço o direito de participação na festa.E eles agradeciam, abanando a cauda.
Uma senhora negra, com uma criança no colo, recebeu-me com um beijo na face. Depois, levou-me até o seu barraco e me deu um caneca com cachaça. Abriu uma garrafa de cerveja e começou a me contar sobre a rotina da favela.
A cerveja e a cachaça me foram servidas em canecas de alumínio que brilhavam. Nunca vi tanto asseio como naquele barraco humilde. Barraco humilde é redundância, né? Mas lá havia um presépio, feito de papelão. Com tudo o que há num presépio: a Virgem, o Carpinteiro,o Menino. Os pastores, os bichos. Os reis, com seus presentes: o incenso, simbolizando a divindade; o ouro, a realeza; e a mirra, a paixão anunciada. E tinha também o anjo, em cima do telhado da manjedoura, com a faixa: "Glória a Deus nas alturas." À distância havia um carro da polícia, pronto para qualquer emergência.
Quando saímos para a rua, na hora da ceia, a batucada comia solta.  Algumas pessoas estavam bastante bêbadas. Mas era uma bebedeira santa e feliz. Sem confusão.Uma bebedeira de quem sofria o ano inteiro e, naquele momento, tinha um momento raro de felicidade. Por dever de ofício, eu não podia ficar bêbado, embora tivesse vontade. Uma menina me chamou de menino bonito. E acho que eu era mesmo.
Serviram frango assado, porque não havia dinheiro para o peru, farofa e muita maionese com batatas, porque entope mais depressa. Pobre adora maionese.
As crianças se contentavam com bolas de futebol de plástico e bonecas baratas, oferecidas por um empresário da região. O olhar do Menino Jesus estava no olhar de todas aquelas crianças. A pureza da Virgem e a humildade do Carpinteiro habitavam nas mulheres e nos homens. E eu, que nunca cri no Natal, senti uma coisa na minha garganta. Meu amigo fotógrafo olhou para mim e brincou:
- O repórter duro está chorando?
Não quis dar o braço a torcer e respondi que talvez fosse efeito da bebida.Mas não era.
E comecei a puxar da memória os natais antigos em família. Até constatar que ali, naquela favela, eu vivi e passei o único Natal feliz. O único - até hoje.
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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