“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

domingo, 10 de janeiro de 2010

O MÁGICO MARIO QUINTANA


Conheci o poeta Mario Quintana (o Mario dele é sem o acento) numa noite de julho de 1978, na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo. Ele, em companhia do romancista Dyonélio Machado, seu conterrâneo, veio a São Paulo fazer uma palestra. Foca que eu era (nome que se dá aos jornalistas em início de carreira), fui designado pelo meu chefe, o poeta e jornalista Álvaro Alves de Faria, hoje grande amigo, a entrevistar o poeta, pelo extinto Diário de São Paulo.
Terminada a palestra, fascinado, como todo principiante, bloco e caneta na mão, dirijo-me ao poeta. Para meu desespero, ele nega a entrevista. Chego a julgá-lo prepotente e antipático. No elevador da biblioteca, temendo pelo meu emprego, insisto. Que me responda ao menos duas perguntas: "Por que o senhor nunca se filiou a nenhuma escola literária? O poema é  como um copo d'água bebido no escuro,conforme está num de seus poemas?" O poeta, terno surrado, olha-me com seus olhinhos miúdos. Diz: "Nunca me filiei a nenhuma escola literária porque o perigo de entrar num barco coletivo é que todos naufragam ao mesmo tempo. Não, o poema não é como um copo d'água bebido no escuro. Todas as definições que dei de poesia foram exatamente para me ver livre dos perguntadores: a poesia não se entrega a quem a define."
Matéria salva. Dessas duas respostas breves, inventei meia página, usando trechos da palestra do poeta. Dia seguinte, o telefone toca na redação do Diário. Dizem que Mario Quintana quer falar comigo. As brincadeiras de mau gosto sempre foram comuns nas redações de jornais e revistas, tendo os mais novos, como era o meu caso, as vítimas preferidas. Mas vou ao telefone. Era o próprio. Queria agradecer pela matéria. Só aí percebi que a negativa da entrevista não era arrogância, mas timidez. O autor de A Rua dos Cataventos, seu livro de estreia, publicado em 1938, quando o soneto andava em baixa, pela febre modernista, não conhecia sua grandeza. Gaúcho do Alegrete, na divisa com o Uruguai, era humilde ao extremo.
E tão humilde que quando quiseram homenageá-lo no seu Alegrete, pedindo que escolhesse um poema para ser perpetuado numa placa de bronze, na praça principal da cidade, recusou, com medo de não escolher o melhor. Disse apenas uma frase, hoje lá imortalizada: "Um engano em
bonze é um engano eterno."
Tradutor de Guy de Maupassant, Papini e Balzac, entre outros, jornalista profissional, solteirão inveterado - dizem que teve um amor platônico pela poeta Cecília Meireles (que era casada e  foi quem divulgou sua poesia no Rio de Janeiro, quando Porto Alegre era apenas uma província), Quintana viveu poesia. Para Cecília ele teria escrito estes versos: "Senhora, eu vos amo tanto/Que até por vosso marido/Me dá um certo quebranto..."
 Irônico e bem-humorado, era dono de tiradas memoriais, prova disto está em seu Caderno H, transformado em livro, título da coluna que publicava no Correio do Povo e que depois, por intermédio do jornalista Tarso de Castro, também gaúcho, passou a sair aos domingos no Folhetim, suplemento cultural do jornal Folha de S.Paulo.
Anos após a minha entrevista com ele, fui encontrá-lo de novo na Bienal do Livro, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo também. Mario autografava o seu Esconderijos do Tempo. Reconheceu-me. Nunca me senti tão importante. E tanto tempo já havia passado. Levantou-se e me veio entregar o livro, com seu autógrafo e a dedicatória: "Para Júlio, com abração do amigo velho, Mario Quintana."
 Tarde da noite, saímos para um café. Ele já não bebia mais.  Eu  já havia publicado um livro e bebia muito. Pedi  conhaque, ele café e presunto. Quando fui pagar a conta, ele tirou do bolso do paletó uma maço de notas amassadas e disse: "Deixe que um poeta velho pague para um poeta novo." A esta época, Quintana residia num quarto de hotel do ex-jogador Falcão, que não lhe cobrava nada. Hoje este quarto é uma espécie de centro cultural. Tudo está como o poeta deixou, inclusive as fotos da atriz Bruna Lombardi, por quem se encheu de encantamento. Até ao final de sua vida, Quintana e eu trocamos correspondência. Era aquele sujeito puro. Que todo mundo queria ter como avô.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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