“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sábado, 3 de abril de 2010

A PROCISSÃO E O MENINO RUIVO DA PROCISSÃO

  • Com a cidade vazia, é possível até pensar, enquanto se caminha. Não sou, já fui, homem de fé. Mas ontem achei que devia assistir à uma procissão. Eu disse assistir, entendam. Fui à igreja Nossa Senhora Achiropita, bem perto de onde moro. Passava um pouco das seis. A procissão, fui informado, ia sair dentro de uma hora. Em frente ao templo, dois bares abertos. Num deles, cerveja, cachaça e samba comiam soltos. Confesso que gosto demais dessa comunhão entre o sagrado e o profano, que, dizem os entendidos - antropólogos, sociólogos e historiadores das religiões -, sempre existiu. E tanto isso é verdade que o pároco da igreja contava com os equipamentos de som da Vai Vai, a escola de samba do bairro, para que todos, mesmo quem não quisesse, pudessem acompanhar a procissão na rua, ouvindo com nitidez os cânticos e as orações.
  • Os equipamentos, porém, apesar das relações estreitas da escola de samba com a igreja,  não chegaram a tempo. O motivo não sei, mas entendo que acidentes de última hora sempre acontecem. Evidente, a procissão não deixou de sair, apesar dos resmungos de algumas senhoras, que tomaram a ausência dos equipamentos como pouco caso dos diretores da Vai Vai com a  igreja. Mas, convenhamos, equipamentos de som são coisas de uma época recente. Noutros tempos, as procissões saíam sem eles e os sacerdotes se esgoelavam, horas a fio, recitando as ladainhas, comentando as catorze estações da via-sacra, puxando as cantorias - e ainda, na volta à igreja, havia o sermão que, dependendo da inspiração do representante de Cristo, podia durar horas.
  • Na década de 1930, o arquiteto e artista plástico Flávio Carvalho escapou de um linchamento, no centro de São Paulo, por verdadeiro milagre. Irreverente e provocador, gênio para uns, louco de hospício para outros, ele quis testar a reação dos fiéis que acompanhavam à procissão de Corpus Christi. O teste consistia em caminhar em sentido contrário e dar de encontro com a procissão, ainda por cima sem tirar o boné. Blasfêmia total. Fiéis mais exaltados, partiram para cima do herege. E a tragédia só não aconteceu porque o artista, ainda jovem, teve pernas para chegar até um bar nas imediações e trancar-se no banheiro, de onde só saiu escoltado pela polícia.
  • Enquanto me recordo do episódio envolvendo Flávio Carvalho, ocorrido quando eu nem sonhava em nascer, volta-me à memória um fato mais ou menos semelhante em que o protagonista fui eu. Com um detalhe: minha idade, não mais que seis anos, foi levada em conta. E só por isso nada de mais grave me aconteceu. Juro que o que vou contar é a verdade, nada mais que a verdade.
  • Era Semana Santa. Viajei com meus pais,  Deus os tenha, mais um grupo de amigos deles para Águas de Lindóia, no interior de São Paulo. Cidade chatíssima, mas, na época, famosa pelas propriedades terapêuticas de suas águas. Naquele tempo, os da minha faixa etária sabem, procissão era procissão. Nas casas, nas ruas, no semblante das pessoas, tudo era luto, tudo era culpa, tudo era dor. E, para dar um toque mais morbido ao ritual, as igrejas ficavam às escuras, iluminadas apenas pelas velas e os santos todos cobertos de roxo. Dos altares  retiravam-se as toalhas e as flores. E não havia, como não há até hoje, a celebração de missas, mas apenas leituras.   
  • Dava medo, principalmente quando o silêncio era quebrado pelo som da matraca, seguido do cântico comprido e histérico da Verônica. O Cristo Morto, com o rosto ensanguentado, vinha na frente, levado por membros de alguma irmandade, que disputavam essa honra quase a tapas. Atrás, aparecia a Virgem, com as espadas cravadas no coração.  Depois o sacerdote, de sobrepeliz e estola roxa, seus acólitos e por fim os fiéis. Nenhum comércio abria. Das janelas das casas, as pessoas, também compenetradas, assistiam à passagem do cortejo. Os homens, nas esquinas, tiravam seus chapéus, reverenciando o morto. Nas cidades pequenas, onde o fanatismo, digo, a fé era maior, caso de Águas de Lindóia,  a procissão seguia pelos bairros principais, o que levava um bom par de horas, até retornar à matriz. E foi exatamente no largo da matriz que protagonizei talvez o maior espetáculo que a cidade das águas terapêuticas pôde presenciar durante uma procissão. Não sei se alguém o registrou, mas, cá entre nós, bem que merecia..
  • No coreto do largo, foi improvisado um púlpito para o sacerdote fazer a homilia. O povaréu, em silêncio. Todos desgraçadamente preparados para assumirem, mais uma vez, a culpa pelo assassinato na cruz do filho de Deus. Até que minha mãe deu falta de mim. Olhava para os lados, eu não estava. Meu pai procurava manter a calma. Os amigos, informados do desaparecimento, saíram à minha procura, entre eles um judeu, que gostava de me ensinar palavrões. E, graças a ele, apesar da pouca idade, meu vocabulário já era bastante rico em palavras obscenas.
  • Foi uma amiga da minha mãe, que mais tarde se casaria com o judeu, meu professor de palavrões, que veio com a notícia. Cutucou minha mãe e apontou para o coreto. Eu, menino de cabelos ruivos e espetados, rosto sardento, estava no coreto bem ao lado do sacerdote, esperando o momento certo para o ataque. Minha mãe não chegou a tempo de evitar o pior. Antes que o sacerdote anunciasse a criança perdida, eu já lhe havia tomado o microfone das mãos e proferido, alto e bom som, algumas palavras de protesto e indignação: "Judeus da filhos da puta. Vão pra puta que pariu. Vocês mataram Jesus Cristo."
  • Se minha mãe não fosse jovem, com certeza cairia fulminada ali mesmo. Não me lembro de ter sofrido qualquer castigo físico. Mas sei que retornamos todos ao hotel. E, no dia seguinte, logo  cedo a São Paulo. O feriado tinha chegado ao fim.
  • Meus pai morreu há quase trinta anos. Minha mãe foi embora há três meses. Ontem, na igreja, enquanto um grupo de jovens da comunidade encenava, diante do altar, as estações da Via Sacra, eu vi ao meu lado o menino que fui. Cabelos ruivos, rosto sardento, inquieto, malcriado e cheio de vontades como todo filho único. Tive desejo de abraçá-lo. Mas quando olhei para o lado, ele não estava mais. Senti um aperto na garganta. Não pelo Cristo morto, porque amanhã, Domingo de Páscoa, tudo vai acabar bem. E Ele vai ressuscitar, como acreditam os que têm fé. Não vou discutir dogmas e nem mistérios. Da mesma forma como  fiquei na igreja o tempo necessário e acompanhei toda a procissão sem pedir nenhuma graça. Não teria cabimento alguém que não crê pedir graça. Até porque se Deus achasse por bem concedê-la não estaria sendo justo.  Só lamentei por Judas, culpado até hoje por uma coisa que não tenho certeza se de fato fez. Todos conheciam Jesus de Nazaré. Pregava na sinagoga. Para prendê-lo não seria preciso um beijo.Mas em toda história, para que exista um herói, é necessário um vilão. Sem o vilão, o herói não existe. Duvido também que Maria assistiu a tudo o que fizeram com seu filho sem nenhum escândalo. Mãe judia morre pelo filho. Da mesma forma, entendo eu, a Igreja transformou Barrabás num malfeitor. Não foi bem assim: Barrabás, como o seu xará - ele também se chamava Jesus - era um revolucionário, que queria a liberdade do seu povo, mas por outro caminho - o das armas, como eu também quis um dia.
  • Foi pensando nisso tudo que voltei para casa. Tomei um copo de vinho, fumei um pouco, enquanto escrevia estas linhas, e depois fui deitar com a televisão ligada. Adormeci, deixando a porta dos sonhos aberta para que o menino ruivo entrasse. Mas ele não veio.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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4 comentários:

  1. Oi Julio ! Gostei do blog. Como cheguei aqui ? Aaaah depois eu conto. :)

    Abrs

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  2. bom que tenha gostado. mas agora fiquei curioso em saber como você chegou. é importante para o blog e para mim.

    seja bem-vinda,

    j.

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  3. justo muito justo, pesquisando Elis enontrei o blog dai que gostei, fiquei :)

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  4. agora é que não entendi. eu adorava - e adoro elis. para mim, ela é imortal. ela está aqui no blogue, sim. cantando com adoniran barbosa e sozinha, além de um poema que dediquei a ela.
    diante disso, aproveito para dizer: - obrigado, elis.

    j.

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