Esperei a poeira baixar para comentar o caso da menina Isabella Nardoni, cujo julgamento dos acusados de sua morte, ocorrida há dois anos, aconteceu na semana passada e despertou comoção não só em São Paulo como no país inteiro.
Não me vou reportar à fatídica noite de 28 de março de 2008. Todos sabem o que aconteceu. Também não vou opinar sobre o veredito anunciado nas primeiras horas de sábado, após o julgamento que durou cinco dias e uma hora mais ou menos, terminando com a condenação dos réus Alexandre Nardoni e sua companheira Ana Carolina Jatobá, pai e madrasta da menina, a 31 e 26 anos de reclusão respectivamente. Até porque a sentença de Alexandre e Ana Jatobá foi apenas oficializada, uma vez que a mídia e a opinião pública já haviam condenado os dois por atecipação.
Sou jornalista há trinta e quatro anos. Iniciei minha carreira, mais por falta de opção do que vocação, aos dezenove, na redação do extinto Diário da Noite, na rua Sete de Abril, 230, em São Paulo. Comecei onde, na época, quase todos começavam - cobrindo assuntos policiais, vendo a morte de perto e tomando um banho de sangue por dia.
Não me arrependo. Aprendi muito com a reportagem policial, que me deu elementos para a literatura que hoje faço. E me arrisco até a parafrasear o polêmico dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues: "A reportagem policial me fez amigo íntimo da morte."
Felizmente, talvez por questão de formação, não perdi a sensibilidade, o que nem sempre ocorreu e ainda ocorre, embora hoje nem tanto, com alguns colegas de profissão. Nunca anos peguei numa arma, nem mesmo descarregada e sempre tratei acusados, vítimas ou parentes e policiais da mesma maneira, procurando agir de acordo com os fundamentos básicos da ética jornalística. Jamais admiti também que presos, por pior que fossem, sofressem qualquer agressão ou constrangimento na minha frente. Sei de colegas que não só assistiam como colaboravam nas sessões de espancamento de acusados dentro de delegacias, além de participarem da divisão de propinas com policiais corruptos. É triste, mas acontecia -
não sei se ainda acontece. Mas isso agora não vem ao caso.
Isabella, mas por que só Isabella Nardoni?!, repito a pergunta que dá título a esta crônica.
Fácil e doloroso responder. Todos os dias os noticiários estampam casos de violência envolvendo crianças de todas as idades e classes sociais. E não só em São Paulo ou Rio de Janeiro. Mas no Brasil e no mundo
inteiro.
Mas acontece que nem todas as pequenas vítimas são Isabella Nardoni, garotinha meiga, bonita, nascida numa família de posses, com direito a almoçar e jantar todos os dias mais o privilégio de frequentar escola particular, além de ter para si festinha de aniversário e presentes no Natal e tudo o mais que todas as crianças deveriam ter e não têm.
Num município ou bairro qualquer da periferia de São Paulo, não vou me lembrar ao certo, dois irmãos, na faixa dos onze anos - Isabella tinha cinco -, depois de passarem algum tempo sob os cuidados do conselho tutelar, uma picaretagem do estado que não serve para nada, em razão dos maus tratos que recebiam do pai e da madrasta, foram devolvidos, porque representantes da entidade acharam por bem que o lugar deles era na casa paterna, embora os dois relutassem. Criança pobre não tem querer. As encomendas então voltaram para o inferno. Resultado: o pai e a madrasta, não contentes com as torturas diárias, acabaram por matar, esquartejar e incinerar os dois irmãos. No começo, a imprensa até deu destaque ao caso. Mas depois, bem não me perguntem. Talvez eu não seja mais tão bem informado e não vou saber responder. Quem sabe os colegas na ativa possam dizer.
Alexandre Nardoni, hoje com 31 anos, comportamento de doze, ao que consta, nunca mostrou disposição para o trabalho. Formou-se em direito, é verdade, mas não se sabe onde e nem como. Dizem que manifestou vontade de seguir a carreira de delegado de polícia. Mas resistiu, preferindo continuar na doce vida às expensas do pai, o também advogado Antônio Nardoni.
Ana Carolina Oliveira, 24 anos, ficou, para usar a linguagem da moda, com Alexandre até Isabella completar onze meses. Bancária , tipo mignon, bastante graciosa e meiga, deve ter balançado, dor da perda à parte, muitos corações durante o tempo em que apareceu na mídia, pedindo justiça para os assassinos da filha. Evidente que Ana Carolina não queria holofotes, muito menos da forma como vieram.
Sai Ana Carolina entra Ana Carolina na vida de Alexandre. Coincidências existem. Ana Carolina Jatobá, 26 anos, ou apenas Jatobá, como ficou conhecida, logo se revelou o oposto da xará e mãe de Isabella. Rosto duro, olhar frio, dizem que era, agora atrás das grades não mais, pavio curto. Tinha ciúme até das cuecas do companheiro, e, evidentemente, jamais convidaria a xará para um chá no 6° andar do edifício London, onde passou a viver com Alexandre e os dois filhos do casal, o mais velho, Pietro, com três anos. Contam os vizinhos que Ana Jatobá tinha um vocabulário nada polido, ou seja: estava mais para Dercy Gonçalves, no auge da carreira, do que para Cecília Meireles. Roupa suja, dependendo das circuntâncias e da tonalidade de voz, costuma ultrapassar os limites da casa.
É provável, agora parece certo, que a "tia Carol" não morria de amores pela pequena Isabella. A menina, muitas vezes, ao retornar das visita à casa do pai, onde tinha um quarto todo seu, aparecia com hematomas e marcas de mordidas nos braços. Quando a mãe lhe perguntava o motivo das marcas, Isabella dizia que fora o irmão. Se estava ou não dizendo a verdade, ninguém sabe e nem saberá.
Consumada a tragédia da noite de 28 de abril, outras personagens vão entrar nesta história. A primeira, a delegada Renata Correia, plantonista na delegacia que atendeu à ocorrência, e que, desde o início, teve certeza que o casal estava diretamente envolvido no crime. Mas a estrela maior apareceria um pouco depois. Francisco Cembranelli, 49 anos, promotor de justiça, casado com uma defensora pública, pai de dois filhos e nas horas vagas conselheiro do Santos Futebol Clube, foi a principal personagem desta história. Tem ao longo de sua carreira mais de mil atuações no tribunal do júri, quase todas coroadas de êxito. Cara de bom moço, não se pode negar que arrancou suspiros do público feminino, inclusive de uma apresentadora de TV que, entrevistando uma promotora, colega de Cembranelli desde os tempos da faculdade, não resistiu e perguntou se ele sempre foi bonito. A promotora com um sorriso cúmplice respondeu afirmativamente.
Na parte contrária, como vilão da história, surge Roberto Podval, um pouco acima do peso, olhos claros, sete anos menos que Cembranelli e constituído pelos Nardoni para defender os acusados. Podval tem no seu currículo perto de quinze júris. Antes de Isabella, o caso de maior repercussão em que atuou teve como réu um famoso médico de São Paulo, que além de matar, também esquartejou o corpo de uma cliente com quem tivera relacionamento amoroso. O médico recebeu a condenação. Mas, graças aos benefícios das nossas leis, após cumprir parte da pena, foi colocado em liberdade.
O criminalista Podval viveu dias de cão por conta do caso Isabella. Cumprindo o seu papel, o criminalista recebeu mais vaias do que o compositor e cantor Sérgio Ricardo, quando apresentou, no festival de música popular da TV Record, em 1967, sua belíssima canção Beto, o Bom de Bola, homenagem ao gênio Mané Garrincha, que não caiu no gosto popular, principalmente do público ligado à extrema direita que fora ao auditório com a missão de vaiar autores e intérpretes que faziam oposição ao regime militar vigente na época. Sérgio Ricardo era um deles. E reagiu à vaia quebrando seu violão e o atirando contra plateia. Mas Roberto Podval não dispunha de violão e, ainda que o tivesse, de nada adiantaria para conter a raiva das pessoas à porta do fórum. Todas as vezes em que o advogado entrava ou saía do plenário tinha de ser escoltado por policiais militares, como se fosse ele quem asfixiou, cortou a rede de proteção e jogou Isabella pela janela do apartamento do casal acusado, como um saco de lixo.
A outra personagem da história e também a mais discreta, o juiz Maurício Fossen, 40 anos, filho de um ex-prefeito de Jundiaí, cidade importante do interior de São Paulo, também conhecida como a terra da uva, só apareceu mesmo, ainda assim não de rosto, para o grande público, quando sua voz anunciou, pelo serviço de alto-falantes do fórum a sentença que condenava o casal. Católico fervoroso, pai exemplar, o juiz Maurício interveio algumas vezes quando acusação e defesa exageraram na troca de farpas no plenário. Mas depois de anunciar o veredito, sua voz foi abafada pelos gritos da multidão na rua somados ao barulho de rojões, dando ao fim do julgamento um clima de final de Copa doMundo, com o Brasil de Dunga campeão, claro.
Por fora, correu a perita criminal Rosangela Monteiro, uma verdadeira expert no assunto. Arrolada como testemunha e responsável pelos laudos técnicos,ela deu uma verdadeira aula durante seu depoimento e foi peça decisiva na condenação dos réus.
Nisso tudo, independente do resultado, justo - até acredito que sim - ou não, tenho algumas dúvidas à parte.
Se Isabella Nardoni e os demais envolvidos fossem negros e moradores da periferia ou apenas pobres, independentes ou não de etnia, será que o caso receberia o mesmo tratamento da imprensa e do povo? Será que em lugar das provas científicas para apontar, sem erro, os culpados a polícia não recorreria a meios menos sofisticados para arrancar de uma vez a confissão dos acusados?
Que fique bem claro: o promotor Cembranelli cumpriu seu papel com extrema dignidade. Evitou valer-se da emoção para pedir a condenação com bases em dados técnicos. Vale lembrar que a função do promotor não é apenas a de acusar. Não havendo provas, ele pode - não é raro - pedir a absolvição do réu. Triste, no entanto, foi o compotamento animalesco da multidão que permaneceu do lado de fora. Não só hostlizaram o advogado de defesa, como os familiares de Alexandre e Ana Jatobá. Cristiane, a irmã de Alexandre, precisou sair a acompanhada da vice-presidente da OAB secção Santana para ir até ao banheiro. Se os pais dos acusados, por infelicidade, colocaram dois monstros no mundo não lhes cabe nenhuma culpa.
Entretanto, da mesma forma como foi esquecido o caso da menina Aracelli Cabrera Crespo, na época com dez anos, drogada, estuprada, assassinada e queimada, na cidade de Vitória, Espírito Santo, bem como o de Claudia Lessin Rodrigues, drogada, violentada, morta e abandonada no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro e também o famoso crime da rua Cuba, em São Paulo, onde ninguém foi julgado por falta de provas, embora todas as suspeitas recaíssem sobre o filho mais velho do casal assassinado no quarto, é possível que a morte de Isabella, amanhã ou depois, desapareça da memória do povo. Basta acontecer outra tragédia igual ou de maior proporção. Afinal, como diz o título de um livro que li há anos e hoje o nome do autor me foge, o crime é uma questão de marketing.
Desgraçadamente, o crime é uma questão de marketing. Eu gostaria muito que esta crônica fosse ficção. Mas não é.
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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Caríssimo Julinho,
ResponderExcluirSua crônica sobre o Caso Isabella Nardoni é certeira como uma bala disparada por um atirador de elite. Parabéns. Peço permissão para transcrevê-la e publicá-la no site de notícias que mantenho em Porto Velho (Rondônia), onde moro atualmente. Do amigo de sempre, Nelson Townes (www.noticiaRo.com)