QUANDO CHEGAR
Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso
julho 67
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CIÚMES
Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente.
abril 68
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A CARTILHA DA CURA
As mulheres e as crianças são as primeiras que
desistem de afundar navios.
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SAMBA-CANÇÃO
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi de graça,
pelo telefone - taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia bruxa, meia fera,
risinho modernista
arranhando na garganta
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
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PROTUBERÂNCIA
Este sorriso que muitos chamam de boca
É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
embora o mundo me condene
Devo falar em nariz (as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me empresta seu peito na madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou,
armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que
se fecham sobre si mesmas
No ano do 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
rainha de quem, quê, não importa
E se eu morrer antes disso
Não verei a lua mais de perto
Talvez me irrite pisar no impisável
e a morte deve ser muito mais gostosa
recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Uma palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.
setembro 68
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Os poemas de Ana Cristina Cesar foram tirados dos livros A teus pés, Brasiliense, São Paulo, 2ª edição, 1983 e Inéditos e Dispersos poesia/prosa, (obra póstuma), organizada por Armando Freitas Filho, Brasiliense, São Paulo, 1985
desconhecia Ana Cristina Cesar, mas fiquei admirado com o seu percurso e a sua escrita. uma homenagem com toda a razão de ser.
ResponderExcluirbelos, os poemas de tributo.
ana cristina cesar, a aninha, como a chamávamos, foi, ao lado do louco paulo leminski, a voz, em poesia, mais significativa da minha geração.
ResponderExcluirj