do meu quarto todas as noites
eu ouvia meu pai gemer as dores do câncer
era um gemido comprido comprido
que parecia não acabar nunca
era um quase canto gregoriano
era um quase ofício de trevas
naqueles dias de agonia
a casa toda tinha olhos de extrema-unção
e cada móvel e cada quadro e cada objeto
era um sacerdote antigo e magro com seu breviário em latim
sempre sempre a recitar o Dies Irae
a casa toda era o próprio Juízo Final de michelangelo
quando levaram meu pai ao hospital
apenas para cumprir o exercício de morrer
toda liturgia foi embora com ele
e a casa voltou a ter seus olhos de casa
os móveis os quadros os objetos
voltaram à natureza comum de móveis quadros objetos
só os versos do Dies Irae continuaram a martelar nos meus ouvidos
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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