“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

CANÇÂO DO POEMA INÚTIL

ao Domingos da Mota, meu amigo

"Morreram todos a bordo, mas o barco persegue o intento que
desde o porto vem buscando."
- Seféris, com tradução do grego do poeta José Paulo Paes -

não me seduz mais caminhar entre mortos neste teatro vazio
as palavras estão gastas como as minhas sandálias de couro cru
não quero mais percorrer essas ruas sem saída
as feridas que trago nos olhos não cicatrizam mais
deixei para trás as esquinas que carregava comigo
herança de madrugadas inúteis
esqueci também a mulher que me esperava com um sorriso
e um por-de-sol nas mãos muito brancas
preciso respirar noutro porto
este aqui não me serve mais: meu navio naufragou - poucos se salvaram
não preciso de sorrisos enviados em garrafas
se não ancorei onde pretendia foi por não conhecer a intimidade dos ventos
os ventos me enganaram
deixei-me trair por uma bússola que pensei existir na palma da minha mão
o norte no entanto era outro e eu não consegui dicifrá-lo
em compensação ainda estou vivo
e não sinto mais nenhuma necessidade do poema

________________
Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
__________________

Um comentário:

  1. "o norte no entanto era outro(...)"

    "e não sinto mais nenhuma necessidade do poema".
    meu amigo querido, desaniversariante (quase-quase)
    um beijo.

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