“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sábado, 25 de dezembro de 2010

ANAMNESE

Mais que fazer
se desfazem

os anos que
por mim passam

Nem sei se levam
se trazem

o que depois
desenlaçam

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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OFÍCIO DE NATAL

Da Estrela Guia não tenho notícia.
Mas sei que uma menina de 13 anos

- prenhe de um soldado -
deu à luz um menino na Praça da Sé.

(A criança morreu 15 minutos antes
da Missa do Galo.)

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL

"Hoje à noite é jovem; da morte, apenas 
Nascemos,  imensamente."

- Vinícius de Moraes, Poema de Natal -

Meus natais nunca foram felizes. Sempre tive tudo, é verdade. Mas jamais me apeteceram as festas natalinas.
Como já disse numa crônica anterior, nessas ocasiões eu me trancava no quarto. E era um deus-nos-acuda pra me tirarem de lá. Não queria comer, não queria presentes, não queria nada. Queria ficar a sós comigo mesmo. E eu tinha apenas seis anos.
Aos sete, por causa desse meu jeito, minha mãe levou-me ao psicanalista. Mas eu não falava com ele. Na mesa do consultório, eu improvisava um campo de futebol de botão e o cura-loucos ficava apenas me olhando, enquanto eu imaginava um estádio lotado e os craques do meu tempo fazendo mágica com a bola nos pés.
Quando fiz dezoito anos, respirei aliviado. Não tinha mais necessidade de ficar em casa, olhando a mesa farta de comida. É verdade que bem antes da maioridade eu não tinha mais o hábito de ficar em casa, já demonstrando um certo gosto pelo álcool. Foram dois anos interno entre os beneditinos. Quando saí, descontei tudo. Sempre fui movido a exageros. Até no exercício de amar. Hoje entendo porque sofro tanto.
Jornalista, escolheram-me para fazer uma reportagem de natal numa favela. Vibrei com a pauta.
Antes da meia-noite, lá fui eu, acompanhado do repórter-fotográfico Tarcísio Mota, meu fiel companheiro de andanças por este mundo-de meu-deus.
Foi na favela Ordem e Progresso, em Vila Prudente. A comunidade nos esperava. Havia uma mesa enorme, coberta de papel crepom, ao ar livre, o que proporcionaria aos cães do pedaço o direito de participação na festa.E eles agradeciam, abanando a cauda.
Uma senhora negra, com uma criança no colo, recebeu-me com um beijo na face. Depois, levou-me até o seu barraco e me deu um caneca com cachaça. Abriu uma garrafa de cerveja e começou a me contar sobre a rotina da favela.
A cerveja e a cachaça me foram servidas em canecas de alumínio que brilhavam. Nunca vi tanto asseio como naquele barraco humilde. Barraco humilde é redundância, né? Mas lá havia um presépio, feito de papelão. Com tudo o que há num presépio: a Virgem, o Carpinteiro,o Menino. Os pastores, os bichos. Os reis, com seus presentes: o incenso, simbolizando a divindade; o ouro, a realeza; e a mirra, a paixão anunciada. E tinha também o anjo, em cima do telhado da manjedoura, com a faixa: "Glória a Deus nas alturas." À distância havia um carro da polícia, pronto para qualquer emergência.
Quando saímos para a rua, na hora da ceia, a batucada comia solta.  Algumas pessoas estavam bastante bêbadas. Mas era uma bebedeira santa e feliz. Sem confusão.Uma bebedeira de quem sofria o ano inteiro e, naquele momento, tinha um momento raro de felicidade. Por dever de ofício, eu não podia ficar bêbado, embora tivesse vontade. Uma menina me chamou de menino bonito. E acho que eu era mesmo.
Serviram frango assado, porque não havia dinheiro para o peru, farofa e muita maionese com batatas, porque entope mais depressa. Pobre adora maionese.
As crianças se contentavam com bolas de futebol de plástico e bonecas baratas, oferecidas por um empresário da região. O olhar do Menino Jesus estava no olhar de todas aquelas crianças. A pureza da Virgem e a humildade do Carpinteiro habitavam nas mulheres e nos homens. E eu, que nunca cri no Natal, senti uma coisa na minha garganta. Meu amigo fotógrafo olhou para mim e brincou:
- O repórter duro está chorando?
Não quis dar o braço a torcer e respondi que talvez fosse efeito da bebida.Mas não era.
E comecei a puxar da memória os natais antigos em família. Até constatar que ali, naquela favela, eu vivi e passei o único Natal feliz. O único - até hoje.
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

NOTURNO DA RUA MARTINIANO DE CARVALHO

um poste calado
em sua dura solidão
de poste

uma calçada ador-
mecida em seus
buracos

uma igreja fechada
sem ouvidos para
orações ou milagres

um casal em de-
lírio que se ama
no muro

um latido de cão
um carro que
passa

um homem trôpego
que sonha navios
perdidos no mar

uma lua no céu
sem nenhuma
importância

um segundo homem
andrajoso que insiste
em viver

(de bicicleta a morte
passa assobiando um
samba-canção)

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

IMAGEM

na surdina
o luar
masca o mar
de
madagascar

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 18 de dezembro de 2010

PEQUENA HISTÓRIA DE UM NATAL URBANO

na antevéspera do natal
durante uma batida da polícia
no centro velho de sampa
o menino jesus foi preso
fumando uma pedra de crack

- sabe com quem tá falando?!
vociferou o menino jesus
- sou o filho de deus
o policial se riu
e aplicou um tapa
no rosto encardido
do menino jesus
e mesmo ele sendo menino
meteu-lhe as algemas nos pulsos

- sou o filho de deus
repetiu o menino jesus
na delegacia

o delegado estava bêbado
e ficou furioso
e mesmo sendo um menino
o delegado mandou
que trancassem o menino jesus
numa cela comum
com presos adultos & perigosos

os presos adultos & perigosos
curraram o menino jesus
mesmo ele se dizendo filho de deus

na noite seguinte
para desespero de seus pais
maria & josé - ele carpinteiro desempregado
o menino jesus
não apareceu para a missa do galo
onde devia nascer de novo

o anjo não pode abrir a faixa
onde se lia
"Glória in excélsis Deo"
o menino jesus também
não compareceu à ceia
organizada pela comunidade da
favela heliópolis

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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ESTE PRAZER É APENAS DELES DOIS

este prazer
é apenas deles dois
quando ela tira todos
os mistérios da boca
e é tão maçã para ele
comer.

este prazer é
deste macho e desta
fêmea toda vez que ele
escreve no corpo
dela a poesia
que o desejo
bordou no
lençol cheio
de vozes.

este prazer
sou eu morrendo
(agoraesempre)
de manhã
com você.


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Karla Bardanza
Rio de Janeiro, Brasil

INSATISFAÇÃO

O poeta sente as palavras ou frases como coisas e não como sinais, e a sua obra como um fim e não como um meio; como uma arma de combate."

Jean-Paul Sartre

A munição não é apenas balas e bombas.
Disparo palavras a esmo, combato a mim mesma
numa luta insana. Todo dia, enfio a faca
no peito para sangrar poemas e sentir
as coisas que permanecem imutáveis.
O efeito é mais do que estético:
a dor é catártica, é necessária.
E quando tudo termina, olho o papel
insatisfeita, procurando a melhor metáfora,
a emoção singular das letras,
e nunca consigo ser poeta.
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Karla Bardanza,
Rio de Janeiro, Brasil
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ADVENTO

Antecipo-me à morte anunciada
Num advento omisso de natais
É só o reflexo da minha fé cansada
De blasfémias de tantos carnavais

É farto o perú de tantos recheios
Na consoada rica e enfeitada
Lá fora uns olhos comem cheiros
que exalam da chaminé dos telhados

E há muita fome enquanto reza a missa
E o galo canta as 24 badaladas
O olhar triste da freira clarissa
A contrastar com a igreja engalanada

Não há menino num berço de palha
Mas há meus senhores...
Muita pobreza envergonhada!

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Maria Fernanda Reis Esteves,
Setúbal, Portugal
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DIÁRIO DE BORDO

1.

nada sei de ventos
nunca viajei de navio

meus naufrágios todos
foram sempre em
terra firme


2.

este nó de marinheiro
dentro do meu peito
que a cada dia me sufoca mais
já nasceu comigo

por isso
nunca vou conseguir
desatá-lo

3.

desejo
navegar até
que os ventos
se cansem

4.

marinheiro sem mar
divirto-me
preparando tempestades
para
a última viagem

5.

agora é tarde
meu navio não tem
mais volta

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

QUADRAS ESCRITAS NO BAR NUM DIA DE CHUVA

cantiga do meu silêncio
fumaça do meu cigarro
augusto dos anjos disse
:beijo véspera do escarro

****

ao concluir seu moisés
michelangelo gritou: -parla!
eu metendo as mãos pelos pés
em silêncio grito: - karla!

****

meu bem a mal não me leve
meu bem não me leve a mal
que a vida é muito breve
só bebo depois do natal

****

passo horas viajando
países num velho mapa
e assim amor vou levando
a minha vida no tapa

****

upa upa upa upa
upa upa cavalinho
um fantasma na garupa
um defunto no caminho

****

beijei a moça no muro
bem-te-vi cantou que me viu
ah bem-te-vi dedo-duro
vai pra pura que te pariu!

****

de mim tenho muito orgulho
também faço muito gosto
diabo me chamo júlio
mas fui nascer em agosto

****

beija-flor discutia
com um filhote de anu
ambos queriam saber
se borboleta tem cu

****

era uma vez uma moça
que contrariou iemanjá
depois de cortar os cabelos
virou espuma do mar

****

-meu reino por uma virgem!
ingênuo o reizinho bradou
perdeu o reino e a coroa
porque nenhuma encontrou

****

pois assim foi que drummond
morreu como passarinho
mas eternizou a pedra
bem no meio do caminho

****

estas quadras pobres quadras
umas até bem sem graça
todas elas foram feitas
sob efeito da cachaça

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Júlio Saraiva,
São Paulo,Brasil
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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

SONETO DA TOTAL INDIFERENÇA

despida/disposta a morte gargalha
e bate na porta do pesadelo
brilha tão cego o fio da navalha
minha loucura cultivo com zelo

com calma costuro minha mortalha
à vida não faço nenhum apelo
e assim não sendo que deus não me valha
caminho só não preciso de tê-lo

se nada me assusta nada me assombra
conto os meus dias na ponta dos dedos
a golpes de pau matei minha sombra

e foi que enterrei todos os meus medos
venha temporal meu barco não tomba
à merda se faço versos azedos

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

ARS POETICA

I

o rato
roeu
a rima

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II

meu desequilíbrio
me mantém
em pé

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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MÁRMORE

A beleza pálida das antigas noivas mortas...

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

RONDÓ

era uma vez um conto
sem vírgula sem ponto

era uma vez uma dama
dona de tamanho encanto
que sempre quando passava
o dia mesmo sem sol suspirava
e o riozinho manso manso
se arriscava a ensaiar um canto

era uma vez um conto
sem vírgula sem ponto

era uma vez uma dama
dona de tamanho encanto
que até mesmo os girassóis
para nosso espanto
arrancavam as próprias pétalas
para tecer-lhe um manto

era uma vez um conto
sem vírgula sem ponto

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

RAPSÓDIA

um pequeno descuido foi suficiente
:ela escapou
equilibrando-se na última linha do poema
rodopiou sobre a mesa na pontinha dos pés
desceu as escadas
entrou no porão
e se trancou para todo o sempre
no baú das coisas inúteis

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

ELEGÍACO

Quintais envelhecidos
Rastros varridos pelo vento
Resíduos de janeiros nas janelas
As lembranças

Paredes pálidas descascam segredos
Caras guardadas em caixas de sapatos
Um fio de eternidade em cada objeto

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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